sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Aprendendo e dialogando com o Miguel Nicolelis: Os riscos da inteligência artificial

O trabalho do Nicolelis sempre me chamou a atenção e recentemente o que eu tenho acompanhado dele me deu alguns insights ou, melhor, aprendi algumas poucas coisas com grande importância para a minha visão filosofico-antropológica e que eu achei que vale a pena compartilhar. Ele e os seus colegas foram capazes de identificar que quando dois cérebros “vibram em uma mesma sintonia” ocorrem mudanças funcionais muito significativas neles. Parece que todos nós sempre soubemos disto. Isto é empiricamente perceptível em nosso dia a dia em geral e parece evidente em certos fenômenos de massa. Um exemplo que ele próprio dá é aquele da comunhão psicoemocional que se experimenta na comemoração de um gol no meio de uma torcida empolgada. O que é interessante é que eles estão identificando os mecanismos físicos, eletromagnéticos, deste fenômeno. Ou seja, estão identificando que realmente há uma comunicação imediata, não verbal, eletromagnética, eventualmente quântica, entre os cérebros e que ela pode ser muito relevante para a atividade cerebral de cada um de nós. Isto pode ter importância real para uma análise antropológica profunda e para a consideração de fenômenos psíquicos e sociais e até parapsicológicos. Penso, imediatamente, na dialética social de dominação e submissão, de opressão e de reconhecimento, assim como, correlativamente, em todo o campo dos determinantes psicossociais da saúde. Atualmente ele tem se manifestado muito sobre a inteligência artificial e sobre os eventuais riscos que ela nos impõe e que, em última instância, seriam riscos existenciais para toda a humanidade, atualmente muito alardeados, que a IA representaria, de eliminar empregos e inclusive nos dominar e destruir. Ele até cunhou o meme: “não é nem inteligência, nem artificial”. Querendo dizer que a IA é humana e natural e não produz conhecimento novo, não tem o dom, digamos assim, da criatividade, que o ser humano, que o cérebro humano, possui. Neste sentido, a IA nunca poderia pensar realmente. Como o Nicolelis acentua, nossa cognição, nossa plataforma cognitiva, não é digital. O cérebro é orgânico, é vivo. E, é óbvio, a vida individual é existencial, é biográfica, e historicamente delimitada. Eu, de fato, não sei como a IA pode ser considerada, ao fim, sob qualquer destes aspectos. O que todos sabemos é que, com os recursos analíticos desenvolvidos por humanos e sobre a base do conhecimento humano produzido até aqui, os sistemas de IA conseguem processar, de forma significativa e operacional, volumes imensos de informação em tempo mínimo. Isto resulta na possibilidade de ‘aprendizado’ e em índices de acerto e precisão na resolução de problemas, muito além dos indivíduos humanos em geral. A gente pode até concordar com o Nicolelis e realmente não botar fé nas grandes ameaças existenciais para a humanidade que muitos vêem na IA. Eu não sei. Mas, não é razoável minimizar o impacto desta tecnologia, que está apenas no início da sua disseminação. É impossível não prever que a inteligência artificial ou que a continuidade do avanço das tecnologias de informação em geral terão ainda impactos muito maiores sobre a nossa vida social e pessoal do que já tiveram até agora. Seria tolo ignorar isto. O Nicolelis não vê estes riscos de perda de empregos em massa ou de domínio e até aniquilação da humanidade, pela associação da IA com a robótica, por exemplo. O risco, que ele de fato vê, é também previsível: estamos nos moldando cada vez mais ao mundo digital e, justamente pela força potencial dos recursos de IA, isto deverá se intensificar muito. Como ele acentua, assim a gente vai moldando o nosso cérebro, que tem como uma das suas características principais justamente esta de se adaptar, de se plasmar, pelos influxos que o ambiente lhe dá. A gente é moldado, a nível cerebral, e você pode dizer sem dúvida, também, hormonal, imunológico, vital, em geral, e até genético, não é mesmo? A gente é moldado pela vida, pelos ambientes existenciais, pelas condições materiais e subjetivas, ou, emocionais, em que a gente vive. E também pela nossa ação nesses ambientes. O que o cérebro recebe de influxo, molda, plasma, de algum modo, o próprio cérebro em seu desenvolvimento natural, desde o útero materno, e, também, em seu funcionamento a cada momento da nossa vida. Nicolelis vê aí o grande risco de que a gente, ao se moldar aos sistemas digitais de interação e atuação ou produção, como está crescentemente acontecendo e ainda mais agora com a IA, ao nos adaptarmos a eles,, a gente pode terminar perdendo também as nossas capacidades criativas. Como a IA apenas é capaz de produzir soluções a partir do conhecimento organizado pelos humanos até agora, isto resultaria numa incapacidade de produção criativa, de criação real do novo, seja em conhecimento científico, ou em arte, por exemplo. Ele chama este estado distópico de “futuro sem futuro”. Para mim, parece que justamente temos aqui, como em todos os grandes avanços tecnológicos, o desenvolvimento intenso das forças produtivas e criativas da humanidade. Como todos recursos tecnológicos, a IA é instrumento, é recurso a nosso dispor e, como no caso dos demais, nós vamos, em princípio, utilizar para a ampliação do exercício da nossa criatividade, ou da nossa produtividade, se você quiser. Como os demais avanços tecnológicos, ao menos potencialmente, ela nos liberta de certos tipos e condições de trabalho ruins, degradantes ou de baixa produtividade, para nos permitir a ampliação do acesso social, do acesso em massa, às atividades que correspondem melhor às nossas melhores qualidades ou que realizam melhor o nosso ser e que, justamente, são fundamentais para o nosso desenvolvimento, as atividades criativas, entre as quais as científicas e tecnológicas, sobretudo. Portanto, ao contrário do Nicolelis, não vejo um mal em si no fato que a gente esteja cada vez mais trabalhando e interagindo com os recursos tecnológicos de informação e comunicação, ou, com as outras pessoas através destes recursos. Eu tenho uma observação pessoal sobre isto que vale a pena registrar aqui. No meu trabalho com autistas eu vi que grande parte tem uma afinidade espontânea pelos recursos digitais, pelo mundo digital e que, muitas vezes, têm performance muito melhor neste ambiente do que na atuação física e na interação pessoal presencial. E também pude constatar, como todo o mundo está identificando, que a frequência de autistas está aumentando muito, em vários países, nas últimas décadas. Também é certo que o autismo é, classicamente, um transtorno de base genética, de transmissão hereditária. O fato, portanto, é que temos cada vez mais pessoas geneticamente autistas ou com características autísticas (como pais e mães de autistas, frequentemente) que se adaptam melhor ao mundo digital. Para finalizar eu creio que o Nicolelis pensa, assim como eu, que todos os grandes riscos para a humanidade, no momento, se agravam, ou até mesmo apenas existem, no sistema capitalista, sejam estes riscos trazidos pelo desenvolvimento tecnológico, sejam aqueles das crises econômicas e sociais extremas, das guerras, ou do aquecimento global e da poluição e degradação da terra em geral. A lógica da acumulação ilimitada da riqueza privada e do ordenamento estratégico da economia, predominante ou exclusivamente, através do mercado capitalista, é, em si mesma, de tal modo disfuncional e destrutiva que está realmente nos conduzindo para verdadeiros riscos existenciais. Ou seja, para ser simples e direto, não é a IA, nem qualquer outra tecnologia, mas, sim o sistema capitalista, que nos ameaça, como civilização e até como espécie.

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