domingo, 15 de janeiro de 2023

GEN, EGO E SISTEMA

Introdução Tenho afirmado, já há alguns anos que há três elementos determinantes na nossa constituição como indivíduos humanos. Estes três determinantes são o GEN, o EGO e o SISTEMA. Poderíamos chamar estes três determinantes de CÓDIGO GENÉTICO, PSIQUÊ E SOCIEDADE. Mas eu prefiro os três primeiros nomes. Gen e código genético se equivalem evidentemente, neste contexto de uso. E GEN é o termo mais sintético e universalmente utilizado, neste sentido que eu adoto. O termo mais preciso para o que eu tenho em mente seria genoma, talvez, mas gen é a sua unidade e conceito fundamental e por isso o escolhi. E eu creio que Ego é preferível a Psiquê, já que, em uma visão sintética, a psiquê inclui todos os elementos do nosso processamento psíquico, ou emocional, e Ego se refere à consolidação ou resolução limitadamente consciente deste processamento em decisões e atitudes que, ao fim, realmente constituem a nossa existência, o nosso ser, a cada momento. E que são nossa biografia real. E prefiro sistema a sociedade porque aquele tem uma conotação mais forte ou mais rica na atualidade. Talvez o melhor seja dizer que se trata do sistema social. Do ponto de vista operacional ou científico se pode falar muito bem em sistema econômico, ou sistema cultural, por exemplo, como subdivisões ou angulações específicas do sistema social. Mas, talvez o meu maior objetivo ao usar o termo sistema preferencialmente a sociedade é porque assim fica mais fácil de focalizar nas questões centrais de comunicação entre (a sociedade ou) o sistema e o ego (ou a psiquê). Características específicas dos três determinantes É muito importante considerar as características específicas destes determinantes e, portanto, suas influências, ou, como já dito, sua participação na constituição do nosso ser. Em primeiro lugar parece correto considerar que estes três determinantes constitutivos do nosso ser operam, todos, pela sua permanência ou perpetuação, o que significa exatamente, genericamente falando, a sua reprodução; ou seja, a sua subsistência no tempo e, nesta, a sua reprodução e, portanto, relativa perpetuação. Vou tentar explicar melhor. Parodiando os estudiosos da genética das populações pode-se dizer que o genoma quer se reproduzir e assim se perpetuar e que os seres vivos, os seres complexos determinados por gens, querem subsistir e se reproduzir, como um veículo da reprodução do seu patrimônio genético específico. Do mesmo modo pode-se dizer que o ego quer a sua perpetuação, por sua afirmação e permanência na história, na cultura, na sociedade, ou, sistema, como queiram chamar. É claro que muitos autores identificam este desejo fundamental, intrínseco ou essencial do ego, mas, para mim. o texto mais destacado e que eu estou praticamente reiterando aqui é o Banquete, do Platão. A fundamentalidade desta determinação, tanto do gen quanto do ego, tanto do corpo quanto da alma, é bem identificada, no texto de Platão, como a força e a energia do amor, a força erótica. Eu disse, num texto anterior. que o ego, como representante ou posição ativa da psiquê ou alma, é o que nos liga ao social, à história e ao futuro. E nos liga nos impulsionando a nos realizarmos e nos encrustarmos no ser social, na reprodução material e espiritual, econômica e cultural, da sociedade, do sistema deixando a nossa contribuição e marca no caminho do humano futuro. Desde a mais humilde existência até as realizações pessoais mais impactantes e marcantes da história são conduzidas, em parte, por esta determinação do ego. Em sua dimensão mais heroica e cultural pode-se dizer que o que o ego quer está estampado na frase de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Este pode bem ser um discurso do ego. No sentido de: “ninguém chega ao humano a não ser passando por mim”! De uma forma mais metafórica pode-se dizer então que cada ego busca se afirmar como o caminho verdadeiro, o “patrimônio genético” cultural do presente e, sobretudo, do futuro humano bom ou verdadeiro. Quanto ao sistema social, ainda que possa ser difícil compreender as suas múltiplas dimensões e as características da determinação que cada uma delas nos impõe e como elas terminam por nos constituir, creio que nenhuma pessoa minimamente informada em relação à história, ou sociologia ou antropologia, enfim, ninguém mais, pelo menos ninguém que não esteja enfiado na ignorância e no delírio, mais ninguém não compreende que somos determinados e constituídos pelo sistema social em que vivemos. Ao delinear o papel do ego já, necessariamente, estamos considerando também o papel do sistema social, pois o ego só existe realmente na interação social, ou seja, em um determinado sistema social. Apenas para não deixar grandes lacunas, neste momento inicial da nossa reflexão, estamos falando aqui, ao falar em sistema social, do trabalho, do sistema produtivo, da linguagem, de toda a comunicação e cultura em sentido restritivo. Podemos também usar o termo cultura, em seu sentido mais amplo, como o sinônimo do que aqui chamamos de sistema social ou de sociedade. Também economia pode ser utilizada como sinônimo de sistema social ou sociedade, como emprego aqui, no sentido de uma economia social, propriamente. Não pode haver qualquer dúvida que o sistema social também tem forças imensas para, ou seja, “se direciona para”, ou, ainda, “pretende”, se perpetuar como tal. Reproduzir-se e se manter com suas características essenciais. E, obviamente, “resiste” à mudança, à transformação real. Estamos atribuindo algumas características de subjetividade a esta dimensão social, do ser humano. Ao sistema social. Bom, nós demos estes acentos, metaforicamente e logicamente, ao gen, então certamente podemos dar os mesmos acentos subjetivos ao sistema social. E podemos considerar mesmo que a permanência, a duração, a continuidade e eventualmente a reprodução são mesmo características ontológicas gerais e realmente fundamentais e presentes nos seres e em diversas de suas dimensões. Com suas características específicas, gen, ego e sistema também têm estas características, também são assim. Mas, talvez, essa observação de generalidade ontológica tenha agora um efeito mais confundidor do que esclarecedor, dadas as especificidades e complexidades próprias, e muito próprias mesmo, do que estamos considerando aqui. Paradoxo dos determinantes do nosso ser. São absolutos e ao mesmo tempo parciais, limitados e superáveis A análise estrutural que estou fazendo aqui tem sentido para nos esclarecer e orientar quanto à nossa atuação e possibilidades, na nossa própria existência, no mundo. Tanto no sentido pessoal quanto no sentido coletivo, histórico ou social. Neste aspecto, e sempre que tratamos deste tema, é imprescindível destacar, desde o primeiro momento que estes três determinantes são constitutivos de nosso ser, mas, é também contra eles que nós nos formamos ao longo da vida. Curiosamente estes determinantes são e não são absolutos. Por exemplo, é claro que qualquer ser humano que seja portador de uma anomalia genética extrema terá imensas limitações e, eventualmente nem mesmo conseguirá subsistir. Mas também é certo, por exemplo, que uma pessoa que tenha uma genética longelínea e de musculatura forte, propícia para certos esportes, mas que não pratique qualquer atividade física e tenha uma alimentação inadequada, eventualmente se tornará obesa ou fraca e inadequada para qualquer esporte. E o inverso também é verdade, até certo limite. Parece razoável concluir que, de qualquer modo, jamais estamos livres do que determina o nosso código genético, mas também não estamos submetidos irremediavelmente a estas determinações, a não ser em seus extremos. Por exemplo, não podemos, hoje, pelas nossas determinações genéticas, viver mais que 140 anos, mas, certamente, podemos prolongar ou reduzir em muito a nossa existência biológica, a nossa vida, dentro deste limite genético, pelo modo como vivemos. E, creio que em um tempo já vislumbrável, ampliaremos também os limites genéticos à duração da nossa vida. O mesmo se pode dizer, com toda certeza, das determinações do sistema. Ainda que sejam de ordem e se dêem por mecanismos completamente diferentes, todos nós também nos fazemos, nos formamos como pessoas, dentro de um sistema social específico e inevitavelmente somos constituídos pelas condições que este sistema nos determina. Obviamente isto vai depender de quando e onde nascemos e vivemos. Somos, de algum modo muito profundo, aquilo que a nossa posição social e histórica nos determina. Recordo agora um exemplo simples que gostava de dar para alunos: certamente ninguém podia ser um piloto de avião antes do fim do século XIX e início do seculo XX, simplesmente porque o avião e outros meios para isto ainda não tinham sido desenvolvidos. Não, pelo menos, no sistema social conhecido, em lugar algum do mundo, até então. E, hoje em dia, certamente, grande parte da humanidade não pode sequer se imaginar, ou apenas pode se imaginar nesta posição, de piloto de avião, dada a sua condição, a sua posição, no sistema social. Mas, se a primeira determinação é absoluta, a segunda nem tanto. E, mais ainda, o que mais nos importa aqui, sobretudo, é que o sistema é constantemente reproduzido, mas também confrontado pelos indivíduos em suas posições individuais, em suas ações de vida, e é historicamente transformado, de muitas maneiras e por muitos processos históricos diferentes. Então, o que eu quero dizer é que nós somos determinados e constituídos pelo gen e pelo sistema, inexoravelmente, mas também é contra eles que nos formamos e realizamos. Sobre o ego é o mesmo, também o ego e seus desígnios fundamentais nos determinam de modo inelutável e também é contra os desejos do ego que todos nós agimos e nos formamos na vida. Mas de modo completamente diferente de como o gen e o sistema atuam, pois o ego, ou a psiquê, é o que nos liga ao mundo social e a nós mesmos, de todos os modos. É como a linguagem chega a nós, por exemplo. Através do ego ou psiquê individual. É o que filtra todas as informações e processa todas as emoções e sentimentos, pensamentos e ideias que são os seus próprios constituintes. Mas, mesmo nessa sua condição peculiaríssima, também a determinação do ego é de se perpetuar, se perpetuar na sociedade, na cultura humana, de algum modo. O ego deseja se realizar no sistema, deixar nele sua marca, seja ela qual for e ainda aquela de encaminhar o humano, de projetar e realizar o humano, de algum modo, está também em todos nós. E essa determinação também se impõe em nós, como um absoluto relativo em nós, assim como ocorre com aquelas do gen e do sistema social. Também essa determinação se impõe sobre nós com a força do absoluto e também é contra ela que nós nos realizamos ao longo da vida. Também não podemos evitar as determinações do ego, não pelo menos nos limites de que alguma posição do ego sempre será a nossa realidade em cada momento da existência. Mas, também como nos outros determinantes, não estamos inelutavelmente circunscritos aos determinantes do ego. Não, nós educamos o nosso ego e, com certeza, o forjamos ao longo da vida, também o combatendo. Três dimensões ou níveis de interesse presentes em toda escolha existencial Então, essa massa energética de emoções e sentimentos, pensamentos e ideias, ancorada, constituída, em uma existência biológica, se propõe a agir. E age. Estas são, digamos assim, as determinações ou as tarefas fundamentais do ego - decidir e agir. Sempre tendo em consideração três conjuntos de interesses ou necessidades, muitas vezes contraditórios entre si: aqueles do próprio indivíduo, os dos grupos aos quais ele pertence e aqueles do coletivo social maior ou, ao fim e profundamente, os da humanidade em geral. Ao agir, ou, antes, ao decidir sobre qualquer ação realmente relevante, com conteúdo existencial realmente significativo, qualquer um de nós considerará os seus interesses individuais, os interesses dos grupos sociais aos quais pertence e, simultaneamente, considerará também os interesses de um nível mais elevado de coletividade, que, representa, de qualquer modo, a humanidade, ou o que ele representa neste lugar de universalidade humana. E esta é a posição do ego, pois este é o desejo do ego, ser parte da cultura humana, contribuir para o futuro humano deixando sua marca cultural, seja ela qual for, neste caminho. Aqueles que como eu compreendem esta dimensão universalista do nosso ego identificam a própria humanidade ou o futuro humano, como este universal, este valor universal sempre projetado na escolha do ego. A tal ponto que a figura do Deus único, monoteísta, pode ser compreendida como uma metáfora, uma ilusão, posta neste lugar fundamental da humanidade, antes de termos a consciência do que ele é. As questões históricas da nossa época Acredito que até aqui eu consegui reiterar os principais determinantes e alguns fundamentos que devem, enfim, ancorar as minhas análises, decisões e atitudes. Mas isto não teria qualquer valor se não servisse para o reconhecimento e o enfrentamento das questões que realmente importam para o presente e, ainda mais, para o futuro humano. Em texto anterior eu já havia me atrevido a identificar quais são as grandes questões, ou encruzilhadas históricas da nossa época: 1. Socialismo x Capitalismo, ou melhor dizendo, Capitalismo Socialista x Capitalismo Liberal, no tocante ao presente, pois, socialismo é, também e necessariamente, capitalismo, é fase de transição do capitalismo, é capitalismo sob a regulação socialista, mas ainda capitalismo. Ou, no tocante ao futuro, como projeção ideológica do futuro humano: anarco comunismo x anarco capitalismo, ou, no limite, fascismo, pois, no limite, anarco capitalismo é, resulta em, fascismo, necessariamente. Nesta questão está envolvida ou incluída também a questão da preservação x destruição progressiva e ilimitada da natureza e das próprias condições naturais de vida humana na terra. Está aí também incluída a questão do risco das grandes guerras mundiais e, novamente, do risco real que elas trazem para a própria existência da humanidade. 2. A questão da Opressão e Abuso do poder dominante contra os povos, etnias, grupos sociais e práticas divergentes na sociedade x o respeito à diversidade e o multiculturalismo. Aqui estão inscritas as questões também do controle social x as liberdades pessoais e de grupos diversos. O paradoxo do pertencimento e da liberdade: tema central da questão 1 (talvez mostrando que ela é a mais importante, ainda é a mais determinante no nosso tempo histórico. 3. A questão da família tradicional x a liberdade amorosa e sexual. Ou seja, família tradicional x comunidade amorosa livre. É, portanto, diante destas grandes questões da nossa história contemporânea que todos, necessariamente, com maior ou menor grau de consciência, nos posicionamos. E é somente em face a elas que os fundamentos acima descritos podem provar sua validade e utilidade ou não. Vamos tratar destes pontos nos textos subsequentes.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O problema das drogas x O problema da guerra contra “as drogas”

O problema das drogas x O problema da guerra contra “as drogas” na perspectiva da saúde pública Prof Dr. Paulo Fleury Teixeira Introdução A ideologia e as políticas antidrogas produzem uma série de abusos e absurdos que não poderiam ser aceitos de modo algum, em qualquer nível de vida civilizada. Mas, em função da “guerra às drogas”, eles são não apenas aceitos, como também difundidos e promovidos. O que estou dizendo é que a ideologia antidrogas produz e justifica todo um universo de práticas violentas, abusivas, bárbaras, imorais e completamente inaceitáveis, mas que, sob a bandeira do combate às drogas e da proteção das pessoas, são, no entanto, bem aceitas na nossa sociedade e são até mesmo sustentadas e apoiadas, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, pelas instituições médicas e sanitárias, no nosso país e mundo afora. Realmente, sob a bandeira de combate às drogas aceitamos como normais a violência e o abuso policial, incluindo agressões, encarceramento de inocentes, assassinatos e execuções sumárias, chacinas e torturas. Isto na ponta criminal e penal. Enquanto, na ponta da assistência e recuperação de usuários de drogas com problemas psíquicos e sociais, também aceitamos o encarceramento, as torturas psicológicas e físicas, a intoxicação química e a religião assumindo o lugar da ciência e da prática médica. E tudo isto é realmente endossado e disseminado, não apenas pelas instituições policiais, judiciárias e religiosas, mas também e sobretudo pela institucionalidade médica e sanitária. De fato, são as instituições médico científicas que, ao fim, sustentam, por sua autoridade técnica, toda a ideologia e as políticas de guerra às drogas. As instituições médicas foram chamadas a cumprir o papel de justificar e disseminar estas práticas abusivas e inaceitáveis. E elas têm cumprido este papel nos últimos 80 anos, ou algo próximo disto. A ideia básica que estas instituições disseminam é que certas drogas impõem risco tão grande à saúde física e, sobretudo, mental das pessoas que elas têm que ser proibidas, pois, se liberadas causariam graves problemas de saúde pública e graves danos sociais. Esta ideia básica, que, por seu caráter próprio, só pode estar enraizada na institucionalidade médico científica, é que sustenta toda a cadeia de abusos contra as pessoas envolvidas com drogas na nossa sociedade. A ideia que estas instituições apresentam à sociedade é que tudo isto se justifica, pois o perigo das drogas seria tão grande que mesmo estes abusos e absurdos todos seriam aceitáveis, ou ao menos toleráveis, como se fossem um mal menor. Ocorre que este raciocínio é falso. E, há décadas, as instituições médico sanitárias estão no centro desta difusão de informações falsas e soluções absurdas e inaceitáveis. De fato, não há evidência que a liberação de drogas proibidas poderia causar mais danos que aqueles provocados pela guerra “às drogas”. Ao contrário. Mas, aqui, como em tudo que se refere ao tema das drogas, há uma névoa difusa de terror e ignorância dominando a questão. Uma verdadeira farsa, ou um equívoco grosseiro, em relação ao risco real das drogas ilícitas se mantém há décadas nas instituições médico científicas. A psiquiatria é ouvida, a pediatria também e todas falam de riscos extremos impostos pelas drogas. Sob o prisma clínico, ou individual, estas visões médicas podem até serem defensáveis, mas é do ponto de vista de saúde pública e do risco social propriamente ditos que ela deve ser realmente avaliada. Pois, a avaliação dos riscos e danos das drogas não pode se circunscrever ao fato de que um indivíduo ou uma família podem ter as suas vidas desgraçadas por causa do abuso e da dependência de drogas. Mas sim, deve-se avaliar qual o peso real e potencial deste problema na população, no conjunto de pessoas expostas ao risco. E comparar com o risco e dano social causado pela guerra às drogas. Portanto, aqui o que se deve ouvir é, sobretudo, a saúde pública, é a visão de saúde coletiva a que mais importa. Parece, no entanto, que há uma omissão ou irresponsabilidade da saúde pública em relação à questão das drogas. Vamos tentar preencher um pouco desta lacuna com um breve exercício de análise de aspectos da epidemiologia das drogas e suas consequências, em comparação com a epidemiologia da guerra “às drogas” e suas consequências. 1. O problema das drogas Vamos considerar, primeiro, algumas estimativas correntes na literatura norte-americana sobre dependência e riscos no uso de algumas drogas, que se pode consultar no CDC, por exemplo. Estima-se que a síndrome de abstinência por cocaína ocorre em 30% dos usuários. Ou seja, em 70% dos usuários não ocorre síndrome de abstinência e, nestes, se reduz o risco, ou a incidência, de dependência química. Estima-se também que 10 a15% dos usuários de maconha se tornam dependentes e que 30% dos usuários tenham distúrbios de uso relacionados a esta droga. Ou seja, quase 90% dos usuários de maconha não se tornariam dependentes e 70% não apresentariam quaisquer problemas de dependência ou abuso. Se transpostas para o nosso país, estimativas como estas, referentes às duas principais drogas ilícitas consumidas no Brasil, indicariam um risco alto imposto por estas drogas à saúde pública? Um risco tão grande que justificaria as prisões, as violências, as mortes e as torturas que são impostas em nome da sua proibição e do tratamento dos drogados? A resposta é não, certamente não. E vamos demonstrar isto com os dados nacionais logo adiante.cContudo, é difícil perceber esta realidade. Há, realmente, uma grande névoa de dados e informações manipuladas e mentirosas, sempre aumentando o risco, o potencial de dano, das drogas. Hoje, por exemplo, se vamos pesquisar no Google sobre o risco de esquizofrenia entre usuários de maconha, vamos receber a informação destacada de que “a chance de desenvolver esquizofrenia seria quatro vezes maior entre usuários de maconha, conclui maior estudo já feito sobre a droga”. Mas isto é falso, é mentiroso. É uma mescla de ignorância e má-fé. Simplesmente não é esta a conclusão do referido estudo dinamarquês: “Development Over Time of the Population Attributable Risk Fraction for Cannabis Use Disorder in Schizophrenia in Denmark”, publicado em 2021, pois, ele simplesmente não trata do risco relativo de esquizofrenia entre usuários de maconha, como é erroneamente afirmado no Google. No entanto, a partir de sua postagem, pela instituição anti drogas SPDM, esta informação falsa rapidamente se disseminou na imprensa e entre as instituições e profissionais de saúde aqui no Brasil. E ninguém vai questionar este erro grosseiro, porque ele confirma os vieses ideológicos estabelecidos pela guerra “às drogas”. Mas, vamos deixar essa névoa ideológica para trás e considerar simplesmente os dados que temos a nossa disposição aqui no Brasil. Considerando-se as internações por abuso de drogas em todo o país em 2021, identificamos, no Datasus, o registro de 28 mil internações por abuso de álcool e 36 mil por abuso de outras drogas, grande parte destas também associadas ao álcool. Seja como for, isto dá um total de 64 mil internações por abuso de drogas em 2021, no Brasil, o que representa 0,37% do total de internações no país naquele ano. É isto mesmo, menos de 0,5% do total de internações são provocadas pelo abuso de drogas. É um percentual bem baixo de fato e deve-se destacar que, na maioria dos casos, a droga lícita, o álcool, está envolvido ou é o agente causal único. O estudo “Internações Decorrentes do Uso de Substâncias Psicoativas no Distrito Federal entre os Anos de 2000 a 2009” mostrou que o álcool era a causa direta de 65% destes casos e múltiplas drogas, onde o álcool frequentemente também está envolvido, representavam a causa de 25% do total de internações decorrentes do uso de drogas. Com base nos dados nacionais e neste estudo do DF eu estimei que as internações por maconha acontecem na proporção de aproximadamente 1 em cada cem mil internações no Brasil. Parece bastante óbvio que, no tocante às internações, não há um grave problema de saúde pública imposto pelas drogas ilícitas no Brasil. E, no caso da maconha, com estes dados, é absolutamente seguro afirmar que a sua liberação e ampla difusão também não implicariam em um problema significativo de saúde pública no nosso país, ao menos no tocante às internações hospitalares. Ao considerarmos a mortalidade relacionada ao uso de drogas, é digno de nota, primeiramente, que a mortalidade relacionada ao uso de álcool e outras drogas bateu recorde no país durante a pandemia. Realmente, a pandemia impôs condições psico sociais tão absurdas que o consumo e as mortes por drogas subiram. Mas, vamos dar uma olhada no detalhe sobre estas mortes, quantas são e quais as drogas envolvidas. Analisando as mortes diretamente associadas a dependência química no Brasil, em 2020, verificamos que foram registradas 11 mil mortes, mas, destas, apenas 500 por drogas ilícitas. Destaque-se que foram 0 morte por dependência química ou abuso de maconha, em contraste com as 8 mil mortes por consumo de álcool e 2,5 mil por tabagismo. É realmente impressionante como a quase totalidade destes óbitos são produzidos pelo consumo das drogas lícitas, legais. E devemos destacar ainda que estas são as mortes que se vinculam diretamente ao uso das drogas, não estando incluídas aí as centenas de milhares de mortes por diversas doenças orgânicas associadas ao álcool e ao cigarro. Vários tipos de câncer e doenças cardiovasculares, por exemplo. Se elas fossem incluídas o total de mortes devido a álcool e tabaco subiriam muito além dos 10,5 mil casos por ano, registrados em 2021, aqui no Brasil. Nos EUA, por exemplo, estima-se que “todo dia morrem 385 americanos como resultado do consumo excessivo de álcool”, ou seja, mais de 140 mil por ano (CDC - Deaths from Excessive Alcohol Use in the United States, 2021). Creio estar claro, portanto, que se há um grande problema de saúde pública identificado pelas mortes relacionadas ao abuso e à dependência de drogas, a quase totalidade destas mortes é, realmente, causado pelas drogas permitidas, pelas drogas lícitas e não pelas drogas proibidas ou ilícitas. 2. O problema da guerra contra “as drogas” Vamos focalizar nossa atenção, imediatamente, sobre a questão das mortes violentas provocadas pela política de combate “às drogas”, pela guerra “às drogas”, considerando os dados nacionais mais atualizados. De acordo com o Datasus, foram 47 mil mortes por agressão em 2020, sendo que 30 mil destas foram causadas por arma de fogo. Neste mesmo ano ainda foram registradas 14 mil mortes violentas não esclarecidas se foram assassinatos ou não. Por estes dados não é possível saber qual a proporção destas mortes está associada à proibição das drogas, ou seja, não é possível saber quantas destas mortes foram provocadas diretamente por traficantes ou por agentes policiais no combate “às drogas”. Não há, de fato, estatísticas seguras neste aspecto, mas, segundo afirmou, em entrevista de 2017, a então secretária de segurança do RN, Sheila Freitas: “78% destas mortes têm relação com o tráfico de drogas”. E, como ela acrescentou, “o perfil da vítima de assassinato no RN é homem jovem, com idade entre 19 e 24 anos, solteiro, pobre, vítima de arma de fogo em 90% dos casos. Estamos preocupados com o crescimento das mortes de crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos". Aplicando esta estatística ao cenário nacional, ela nos indica que aproximadamente 37 a 48 mil mortes seriam causadas, anualmente em nosso país, pela ideologia e pelas políticas públicas de guerra “às drogas”. E pior, algo que merece o maior destaque, a grande maioria destas mortes são de jovens ou adolescentes negros e pobres. Mortos exclusivamente em nome desta ideologia. Não existem dados que nos permitam sequer estimar diretamente qual seria o total de internações, cirurgias, sequelas e incapacidades resultantes da violência provocada pela guerra “às drogas”, mas podemos, com segurança, dado o número de mortes, estimar em várias dezenas ou algumas centenas de milhares de casos anuais. Portanto, hoje, no Brasil, no que toca às mortes, o problema de saúde pública causado pelo combate “às drogas” e pela política de criminalização “das drogas” é muitas e muitas vezes maior, mais grave e mais destrutivo do que o problema causado pelas próprias drogas ilícitas. Além das mortes e das internações, cirurgias, sequelas e incapacidades, a criminalização das drogas é ainda mais pródiga em produzir prisões. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, em 2005, antes da atual legislação antidrogas, 14% dos presos foram condenados por crimes relacionados ao tráfico,. Já em 2019, o delito representava 27,4% dos presos. E entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total. Ora, o total de presos no Brasil foi de 900 mil em 2021 e está crescendo, de acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); ou seja, hoje, algo como 250 mil pessoas estão presas, no Brasil, por tráfico de drogas, exclusivamente. E mais da metade do total de mulheres presas é por esta causa. Não é razoável, nem mesmo deveria ser possível, que a saúde pública desconsiderasse o dano causado por estas centenas de milhares de prisões, principalmente de jovens, homens e mulheres, por tráfico de drogas. São vidas temporariamente interrompidas, com toda uma série de consequências negativas que daí advêm para eles e para os seus familiares e a sociedade em geral. Ainda precisamos considerar que parcela destes problemas extremamente graves são consequência da devida ação legal do Estado, mas, o que piora muito as coisas, grande parte é causada por abuso e violência ilegal e imoral seja das polícias, seja da justiça e / ou do sistema penal. Hoje, no Brasil, 32% a 50% dos presos são provisórios, sem julgamento, e 35% dos presos são agredidos na prisão, de acordo com a SSPSP. E, mais, como informa a Agência Câmara de Notícias, a tortura é reconhecida pela ONU como um problema estrutural do sistema carcerário no Brasil. O que é uma vergonha e uma abominação sobre toda a nação brasileira. Mais uma vez, como é possível que a área de saúde, em especial a saúde pública, continue de olhos fechados para esta realidade, endossando a necro política anti “drogas”? Temos que incluir aqui ainda, apenas como referência, porque os dados são muito precários nesta área, todas as internações de longa permanência, todas as reclusões forçadas, todas as torturas psicológicas e físicas, todas as intoxicações medicamentosas, todos os adoecimentos e incapacitações impostas a milhares de jovens sob a alegação de reabilitá-los e protegê-los do malefício das drogas. Está mais do que evidente que os danos de saúde pública e sociais causados pela ideologia de criminalização das drogas são imensamente maiores do que os problemas de saúde pública e sociais, causados ou potenciais, das drogas ilícitas. Vamos então perguntar, pela última vez, como é possível que a ciência e a institucionalidade médico sanitária ainda se mostrem alheias a esta realidade e continuem apoiando a criminalização das drogas ou permaneçam omissas diante desta tragédia? Isto é pior do que uma simples irresponsabilidade, é um verdeiro crime.