sábado, 18 de novembro de 2023

A Questão do Fascismo no sistema social mundial contemporâneo e, em especial, no Brasil

Ao indicar quais seriam as grandes questões ideológicas do nosso tempo, eu afirmei que uma delas é a oposição entre capitalismo liberal e fascismo, por um lado, e social-democracia e socialismo, por outro. Em vários textos anteriores me concentrei na análise da contraposição entre o capitalismo liberal e o socialismo, na dinâmica histórica mundial atual, ou, no sistema mundial contemporâneo. No presente texto vou me dedicar à análise da questão do fascismo dentro desta mesma perspectiva, ou seja, na perspectiva da dinâmica histórica do sistema social mundial contemporâneo. 1. Fascismo Político x Fascismo Social Entre aqueles países que detêm a maior parte da riqueza e do poder no sistema capitalista mundial, na Europa, nos EUA e em alguns outros pontos do planeta, é certo, ao menos em parte, falar que o fascismo é uma ameaça ocasional ou episódica, rara e improvável. E até pode ser aceitável dizer que se trata de um fenômeno político, em sua essência. Mas, para nós, aqui no Brasil e no mundo dos países pós coloniais, secundários e terciários no sistema de poder capitalista mundial atual, a situação é diferente. O fascismo é mais presente grande parte do tempo, ou, é dominante o tempo todo. Como dizia um rapper, “democracia na favela é prejuízo, aqui manda quem pode e obedece quem tem juízo”. O que nas sociedades, ou, nas camadas sociais, que concentram poder e riqueza no sistema mundial é raro, improvável, ou, oculto, do outro lado, nas periferias das sociedades pós-coloniais, parece sempre ser uma possibilidade muito mais real e uma realidade muito mais brutal Aqui temos níveis de opressão violenta cotidiana que os países do centro de poder mundial já superaram. Isto faz de nós uma nação estúpida, repousando na violência constante. Nós somos fascistas no nosso dia a dia. É uma inferioridade e uma opressão, constantes, que atingem, muito desigualmente, a todos nós, como povo e como pessoas. Você pode e deve, com toda razão, dizer que os negros nos EUA sofrem uma violência social extrema, completamente inaceitável e absurda. Mas você tem que reconhecer que no Brasil isso consegue ser ainda pior. Porque a miséria e a degradação social impostas à população de cor preta aqui no Brasil conseguem ser ainda muito maiores do que nos EUA. Para registro acaba de sair estudo mostrando que a polícia mata uma pessoa negra a cada 4 horas aqui no Brasil. E a gente é pior também com relação à opressão e violência contra mulheres, contra homossexuais, usuários de drogas, pobres etc. De um modo geral, em termos de opressão e exploração, aqui é tudo pior e mais violento quando estabelecemos como comparação as populações mais ricas e poderosas do mundo. E se trata, de muitos modos, de violência institucionalizada, violência aceita, organizada e imposta, mais ou menos direta e explicitamente, pelo próprio poder público. Aqui o fascismo é mais presente e mais explícito no cotidiano. Aqui há uma violência social brutal e aterrorizante, cotidiana e institucionalizada, que é, realmente, fascista. O que é aceitável aqui, certamente não seria nos locais centrais do sistema capitalista. O que, para os centros de poder do sistema, é anatemizado como inaceitável violência fascista, aqui é cotidiano e normalizado. Assassinatos sistemáticos pelo poder policial e forças paramilitares, tortura sistemática dentro do sistema policial e prisional, abuso de poder e violência do aparato judiciário e policial, contra os mesmos alvos, já vulnerabilizados e excluídos, de sempre. Tudo isto é fascismo. E aqui é normal. Até visto como desejável. Até elogiável. Igrejas, programas de TV, operações policiais e mandatos judiciais exalam, expressam e compõem uma ideologia de violência dentro e para além dos limites legais, contra os mesmos grupos-alvo bem conhecidos da nossa sociedade. E, por mais que contestem, é sempre ainda mais contra o pobre que esta estrutura se ergue em geral. É muito ruim para o gay e para o negro. Mas é muito pior se ele for pobre. É muito pior para índios, para mulheres, para trans, para drogados, para deficientes, para idosos, quando são pobres. A violência fascista no dia a dia do Brasil aparece, de forma realmente brutal, é contra o pobre. E isto é da natureza capitalista do fascismo, mesmo. Aqui no Brasil, como em geral, o fascismo é a imposição do poder do capital através do Estado, de forma brutal, explícita e para além dos limites estabelecidos pela democracia constitucional e pelos direitos humanos O terrorismo de Estado é a arma e o recurso natural do fascismo e aqui ele é cotidiano. É certo dizer, em abstrato, que, onde quer que o fascismo se instaure, o poder dos dominantes se estabelece de forma mais brutal, através do terror, imposto sobre a população em geral, e sobre os grupos-alvo da dominação e do controle social, em especial. Desenvolver alguma forma, e os instrumentos. de imposição efetiva do poder dominante é uma condição essencial à existência de qualquer Estado. Mas, dentro da história do sistema capitalista mundial existe uma distinção específica para os estados e as sociedades realmente fascistas. E é justamente com base nesta distinção que eu digo que aqui vivemos um fascismo cotidiano, que nos acompanha desde a nossa origem histórica, como país, e continua no presente. Vamos fazer o que com a violência absurda da nossa vida social? Vamos ignorar o nosso fascismo cotidiano? Tem gente que considera que o fascismo é um fenômeno apenas político: a regressão a uma forma política ditatorial não democrática, imperial, de poder autocrático e discricionário, essencialmente não constitucional, com forte apelo emocional conservador e de mobilização de massas. Mas, eu aprendi que não existe fenômeno político realmente importante sem enraizamento em uma estrutura social e que, no entanto, diferentes modelos políticos podem ser adequados para uma mesma estrutura social. De fato, podemos ter fascismo político dentro da economia capitalista liberal e também fascismo disseminado na sociedade, na vida social, até mesmo dentro de modelos políticos democráticos. E é esta a condição do mundo de periferia do capitalismo, em geral, aqui na América do Sul, por exemplo, aqui no Brasil. Aqui a vida social é fascista, sempre foi e continua a ser fascista, mesmo em momentos democráticos. Os níveis de violência social aqui não são compatíveis com os limites estabelecidos num Estado democrático de direito e nem pelos direitos humanos da ONU. Por estes parâmetros, os níveis de violência contra os grupos sociais excluídos e oprimidos, a violência econômica, policial, jurídica, a violência institucional e disseminada na sociedade brasileira, por exemplo, sempre estiveram em níveis inaceitáveis. Aqui o abuso e a violência, dentro e fora dos limites legais, continuam sempre muito presentes nas práticas institucionais e sociais. Mesmo nos nossos momentos democráticos. Portanto, podemos dizer que somos, sempre, fascistas. A nossa estrutura social, as nossas instituições de poder, a nossa justiça e a nossa polícia, por exemplo, tudo isto é muito fascista. Tudo isto opera no marco do abuso e da violência institucional contra os grupos sociais mais vulneráveis e marginalizados. O terrorismo de Estado aqui é realmente a prática cotidiana. A tortura, a execução sumária, a violência sem limites legais, são correntes na nossa estrutura de poder social. É fascismo mesmo. E não é de se estranhar que seja racista, misógino, homofóbico e, sobretudo, de opressão dos pobres. A imposição violenta, terrorista, da exclusão social extrema sempre marcou a nossa sociedade, em toda a nossa história, e continua assim até hoje. Aqui, a vitória política sobre o fascismo, como esta ocorrida na última eleição presidencial, é sempre parcial, incompleta e insegura. Porque o fascismo está muito impregnado em nossa estrutura de poder social. Mesmo nos nossos melhores momentos democráticos. A forma política do fascismo sempre nos espreita, porque ele está arraigado na nossa cultura, na nossa realidade histórica e é uma demanda periódica da estrutura econômica da nossa sociedade, simplesmente para manter os níveis de desigualdade, de concentração e abuso de poder que a atravessam, como uma espinha dorsal. Aqui a violência abusiva, ilegal e terrorista, é aplicada pelo poder econômico e político como uma parte legítima da nossa cultura social, legal ou tacitamente legitimada pela sociedade. Nós somos assim, esse é o nosso jeito, é o que dizem os assassinos e abusadores fascistas de hoje e de sempre. E toda a estrutura social em que vivemos repousa nesse fascismo cotidiano. Sem isto não existiriam as favelas e as periferias miseráveis que temos. A pobreza aqui é imposta e silenciada assim, na bala e na porrada, desde sempre. E o nome disto, gostem ou não, é fascismo mesmo. Isto é o fascismo, essa forma regressiva extrema do capitalismo, quando ele nega todas as suas veleidades de respeito constitucional, de igualdade legal e de liberdade pessoal mesmo, para impor o domínio dos ricos e dos poderosos através da violência brutal, do terrorismo estatal. O fascismo realmente não é apenas um fenômeno politico. É, antes, um fenômeno social, como tudo o que tem relevância política. Nos países centrais do sistema capitalista mundial, o fascismo se apresentou como uma forma política regressiva extrema dentro do sistema capitalista mundial. Aí, em algumas nações específicas, o fascismo foi a resposta política mais extrema e absurda à necessidade de imposição do poder, em condições de crise econômico-social realmente extrema, quando a tendência de ciclo vicioso das grandes crises capitalistas não pode mais encontrar uma solução liberal e ao mesmo tempo democrática e sem guerras. O que, nos centros do capitalismo é uma possibilidade extrema e extremamente absurda de resposta política às grandes crises econômicas, aqui é a realidade razoavelmente constante e socialmente justificada. Talvez porque, para a massa da população, as condições de vida aqui sejam aquelas de uma crise econômica constante e contínua, de persistente alijamento dos frutos do desenvolvimento da riqueza social. 2. Fascismo de direita x fascismo de esquerda É claro e óbvio, por todas as evidências históricas, que o fascismo não pode ser considerado um fenômeno da esquerda, ou como eu prefiro dizer, em sentido historicamente mais significativo atualmente, um fenômeno do socialismo. Não, isto não é verdade. Historicamente o fascismo é um fenômeno extremo do capitalismo. Emerge em países centrais, mas secundários, do sistema capitalista colonialista mundial. E surge como um movimento de contraposição e combate direto e mortal ao comunismo e ao anarquismo. Mas, nem por isso se deve dizer que o socialismo seja incompatível com o fascismo. Isto seria demais. A história mostra que os países que tentaram o socialismo terminaram em Estados fortes e, eventualmente, abertamente fascistas. O que podemos, talvez, dizer com segurança é que o fascismo é menos provável no socialismo. É certo que o socialismo não garante o fim do fascismo, mas é mais seguro do que o capitalismo neste sentido. A pressão social para a opressão extrema, violenta, abusiva, que marca a forma política fascista, vem da exploração social extrema e da exclusão e do abuso de poder que a concentração ilimitada de riquezas traz. Isto é mantido por violência. Simples assim. E, quando as crises capitalistas se aprofundam. o fascismo retorna à pauta política no sistema, mais ou menos explicitamente. E pode realmente voltar a prevalecer até mesmo em algumas sociedades centrais do sistema capitalista mundial. Mas, o fascismo é um beco sem saída e, no limite, não interessa ao próprio sistema capitalista. Ao menos nos países centrais do sistema. Somente nas periferias é que ele é uma presença constante. Mesmo que não explícito na política, o fascismo é predominante em muito da nossa sociedade, o tempo todo. O socialismo, enquanto forma política, tem se caracterizado sobretudo pela doutrina do partido único, na via do socialismo revolucionário, ou, pela democracia formal e participativa, na via social-democrática. Mas, o socialismo, mais ainda que o fascismo, não pode ser entendido apenas ou essencialmente, como uma forma política. Assim como o capitalismo não é. É um modo de produção ou uma forma de sistema social. O socialismo é a forma de transição final do capitalismo. A forma de transição final e superação do modo de produção capitalista. E, como o capitalismo, o socialismo também pode conviver com diversas formas de poder político. O capitalismo não foi e não é avesso a ditaduras militares, teocracias, democracias formais, democracias participativas ou qualquer outra forma que você queira. O socialismo, por ser forma de transição final do capitalismo, não pode, por questão de simples realidade, tentar impor uma forma política única para todo o sistema econômico mundial. As mudanças no sistema estão e estarão em processo e as formas políticas de desenvolvimento do socialismo podem ser, são e serão, diversas também. O socialismo não pode pretender, e não vai pretender, isolar do sistema mundial as ditaduras religiosas, por exemplo, por mais fascistas que elas pareçam ser e realmente sejam. Do mesmo modo que o socialismo não pode e não deve pretender excluir o Brasil por ser um país fascista em várias dimensões da vida social e práticas institucionais. O socialismo, no entanto, como ideologia, não pode propor ou dar sustentação, jamais, a uma ditadura de uma casta, ou, de um grupo social, que, com o domínio concentrado da economia e da política, impõe, contra a vontade popular, a sua manutenção e perpetuação no poder. Para quem não conhece como é o sistema de tomada de decisão e controle social, nos países socialistas, e como é nos países capitalistas, parece, no entanto que a prática é justo o contrário. No raciocínio ingênuo e ideologicamente formatado pela visão liberal, a ideia singela de liberdade, no mercado capitalista, e de representatividade, na democracia política pluripartidária, é contraposta à dura realidade de locais que, em condições econômicas e sociais muito piores do que nos centros do capitalismo, desenvolveram ditaduras socialistas e deram em algumas formas de Estado fascista. Nós aqui, que temos fascismo cotidiano, sabemos como tem sido difícil para todos os países periféricos, pós coloniais, pobres ou em desenvolvimento. O suficiente para não podermos ser críticos demais às ditaduras fascistas socialistas, porque aqui sempre estamos numa porra de uma ditadura fascista capitalista. Mesmo nos nossos melhores momentos democráticos. Bom, agora, é claro que isto não é suficiente. Em que eu baseio minha avaliação que o socialismo nos protege do fascismo? O socialismo nos garante uma educação de base de qualidade mais universalizada do que o capitalismo. E eu posso apostar que isto é algum antídoto contra o fascismo, no longo prazo. Mas talvez não seja suficiente. Além disto, as guerras inter-imperialistas certamente não foram, até agora, guerras socialistas. Talvez estas guerras tenham realmente muito menos sentido ou realmente não tenham sentido algum num mundo socialista. O socialismo é intrinsecamente, por sua ideologia mesmo, internacionalista, ou, globalista e o fascismo dificilmente poderia existir sem o belicismo inter-imperialista e colonialista. Sobretudo, o fascismo se assenta em uma estrutura de classes capitalista, é um fenômeno característico dos momentos, ou condições, de crise extrema do sistema capitalista, definido pela abolição da democracia, com regressão ao poder autocrático, militar e belicista característico do período imperial da Europa, com a abolição também de direitos civis e sociais e a regressão à violência e ao terrorismo de Estado. O fascismo político Europeu foi, e é, forma extrema de solução politica da crise econômica capitalista quando atingiu os níveis mais extremados. É forma de imposição, com violência mais extrema e explícita, da estrutura social capitalista liberal nos extremos da crise econômica. Ou seja, é forma política de manutenção ou aumento da concentração das riquezas sociais em níveis econômicos extremos, em que ocorrem grandes dificuldades de realização do capital, dos investimentos, crises financeiras e de setores produtivos, desemprego e pobreza. Disto se alimentam a xenofobia, o nacionalismo, o belicismo e o totalitarismo. E o fascismo nasce, ou renasce. E. não podemos esquecer que, aquilo que é uma resposta política e social da crise extrema nos países centrais, é, aqui, a condição cotidiana de exploração e opressão sociais. Por lado, por sua ideologia e forma próprias, ou, no que é propriamente pertinente à sua estrutura social econômica, o socialismo não é fascista. Mas, então, porque vários, senão todos, os Estados revolucionários socialistas ou comunistas puderam ser considerados fascistas? Em primeiro lugar, mesmo os Estados revolucionários socialistas ou comunistas, que puderam ser caracterizados como fascistas, têm que ser computados dentro do sistema capitalista mundial. Porque as condições econômicas e geopolíticas em que eles se inseriam ou se inserem atualmente são, ainda, aquelas do sistema capitalista mundial contemporâneo. Em segundo lugar, existe um aspecto ideológico equivocado aí, ao se considerar que todo Estado que não seja uma democracia política é, necessariamente, fascista ou, de qualquer modo, totalitarista. Como eu tenho insistido, o fascismo não é apenas político, não é apenas uma negação ou substituição do estado democrático. Em comparação aos países centrais do imperialismo e, em alguns aspectos, podemos realmente considerar os países comunistas como fascistas. Mas, em comparação com o restante do mundo capitalista, então, temos que dizer, na verdade, que todos os países que não estão no centro de poder e riqueza imperialista são fascistas, constantemente ou na maior parte do tempo. Predomina o chamado “Estado de exceção”, exercendo violência ilimitada e discricionária e a supressão de liberdades e direitos fundamentais. A violência, originária e quase impossível de se disfarçar e controlar, da sociedade capitalista emerge em sua estupidez extrema no fascismo, como a resposta final aos desafios da realidade às pretensões liberais capitalistas. Aquilo que no socialismo se corrige com o controle público da direção estratégica e financeira da economia, no capitalismo liberal deve ser resolvido apenas pelo aprofundamento da crise aos extremos de empobrecimento e degradação social. Não há, de fato, limite econômico para nada disto na lógica do capitalismo liberal. No sistema capitalista mundial contemporâneo, a solução autoritária extrema está sempre presente nestes momentos de crise econômica. Esta é a razão pela qual vemos forças claramente xenofóbicas, nacionalistas e violentas emergirem no mundo atual no extremo liberal do espectro de política econômica. Esta extrema direita fascista é a resposta mais extrema e violenta que o liberalismo pode dar às grandes crises do sistema capitalista mundial. 3. A superação socialista do fascismo no mundo e no Brasil Nos países secundários do imperialismo capitalista, em que ele ocorreu, o fascismo tomou a forma diretamente regressiva de ditadura política e autoritarismo estatal, em relação à democracia, ou à social-democracia, que se desenvolviam em alguns centros de poder e riqueza do sistema capitalista mundial à época. Mas, também é certo que ele surgiu como uma resposta social extrema à crise econômica e ao aparente beco sem saída em que estes países se encontravam, dentro do conflito inter-imperialista de então. Não é mesmo possível separar a história deste fascismo das grandes guerras inter-imperialistas do século passado. Não, ao contrário, desde sua origem até o seu destino, o fascismo político europeu esteve completamente ligado a estas guerras. Aqui entre nós, nas periferias do sistema, àquela época e ainda hoje, a coisa é diferente. Aqui a crise econômica é, de certo modo, permanente. A pobreza, a miséria, a falta de recursos são constantes. E com isto, de algum modo, necessariamente, o fascismo também é constante, sempre presente no nosso cotidiano. Aqui a violência física social institucionalizada, ou, nas franjas da institucionalidade, é cotidiana nas áreas de conflitos sociais extremos que atravessam as nossas sociedades. As favelas, as aldeias, as vilas, as periferias de extrema pobreza, as ocupações irregulares, as condições de trabalho desumanas, as condições de moradia muito precárias, a falta de esgoto, de água, a falta dos recursos básicos, a falta de uma educação pública de qualidade, isso tudo é mantido, é contido, é organizado, aqui no Brasil, certamente, com altas doses de terrorismo social e de estado, com altas doses de violência legal ou ilegal da polícia e da justiça, por exemplo. Isto é constante entre nós. E mostra o fascismo nosso de todos os dias, desde sempre e até hoje. De tal modo que é até certo dizer, como disse um rapper, que aqui nós vivemos uma guerra civil constante, apenas não declarada. Para mim, portanto, também não é razoável conceber uma superação apenas política do fascismo. Não seria possível, na verdade, superar o fascismo, na Europa do século passado, sem a combinação do efeito econômico das grandes guerras e o desenvolvimento da social-democracia. As guerras extremas permitiram a queima de capital e pavimentaram a reestruturação das economias pós-crise e o desenvolvimento da social-democracia sustentou as condições sociais necessárias para o grande ciclo de desenvolvimento que ocorreu desde o pós-guerra. Somente assim o fascismo pôde ser derrotado lá. As conquistas da social-democracia, relativas à renda, às condições do trabalho e às condições básicas de vida, por exemplo, assim como em relação ao controle da violência Estatal, que, em escalas diferentes e com suas flutuações, se disseminaram em todo o centro de poder e riqueza do sistema capitalista mundial, tudo isto, aqui, no entanto, é protraído, é sempre faltante, incipiente ou corrupto e sempre insuficiente. Por isso mesmo o fascismo aqui nunca foi vencido realmente e sempre está presente, de diversos modos, em diversas dimensões da nossa vida social, das nossas relações sociais, das nossas instituições, da nossa cultura. Aqui, parece, muitas vezes, que nós estamos presos em uma danação histórica e somos sempre iguais, desde os tempos da colonização até agora. A violência, o roubo e o abuso, contra certos grupos sociais, étnicos e de gênero, a imposição do domínio pela força, o papel central da religião e das armas, na política e em toda a vida social, tudo isto, que é tão caro aos fascistas, em geral, aqui, é parte do nosso dia a dia, desde sempre. Apenas para registro do que estou dizendo, hoje é o dia 13/11/2023 uma segunda feira, e no fim de semana foram assassinados 05 pessoas nestas condições de conflito tão velhas aqui no nosso país: dois do movimento MST, em uma ocupação de terra, 01 indígena, em outra situação de conflito de terra, e mais dois outros militantes. E isto não é nenhuma novidade. E estes são apenas os mortos diretamente ligados a algum movimento social e notificados. A guerra civil não declarada realmente explode em diversas periferias do país, para todo lado, constantemente. Mas, de fato, a história não para e nós estamos inseridos no sistema econômico e social mundial que tem sido chacoalhado por movimentos realmente tectônicos nas últimas décadas. E é daí que tiro a previsão de que, no mundo em geral, estamos, novamente, vencendo o fascismo e o Brasil vem junto. Ainda que, justo agora, estejamos no meio de grandes batalhas contra fortes tendências regressivas, contrárias à integração mundial, belicistas e fascistas dentro do sistema, eu vejo, com certeza, que a tendência, o caminho histórico, o direcionamento real e profundo do sistema social mundial é socializante e de superação do fascismo. O fascismo é uma resposta de imposição do poder na sociedade capitalista, característica de condições de violência econômica e social extremas, como pode ocorrer, até mesmo em centros de riqueza e poder do sistema, no curso das grandes crises econômicas capitalistas. Parece-me realmente de se esperar que, no curso dessas grandes crises, o fascismo surja e ressurja, em novas roupagens, numa tentativa de imposição do poder e preservação dos ganhos capitalistas, para além de qualquer contestação política ou social, de forma totalitária e populista. Por contraditório que isto pareça, o fascismo é uma extensão extrema, ao absurdo, se você quiser, do liberalismo, da ética liberal. E é realmente o que aconteceu agora, novamente, quando atingimos um ponto avançado da crise econômica e social do sistema econômico mundial que vem se desdobrando desde a primeira da década deste século. É preciso entender que esta crise tem sido controlada e debelada por vários mecanismos e recursos anticíclicos e de proteção social, numa escala muitas vezes maior do que em qualquer outra crise anterior, mas, mesmo assim, ela se arrasta e se manifesta, de um modo ou de outro, em vários pontos do sistema, desde então. Eu considero que não será possível a resolução desta crise sem um novo desenvolvimento da social-democracia, ou do socialismo, no sistema capitalista mundial. Como ocorreu no século passado, sobretudo na segunda, desde o pós-guerra. E agora vamos ainda mais adiante, necessariamente, para podermos sair realmente da grande crise e dos verdadeiros becos sem saída econômica e social em que estamos metidos no mundo agora. O que, obviamente, não significa retroceder à social-democracia ou ao socialismo do pós-guerra do século passado. Mas, certamente, um novo grande avanço histórico no sentido socializante. Espero que cheguemos a isto sem a necessidade de passar por grandes guerras, como infelizmente ocorreu no século passado. E creio que chegaremos a isto sim, especialmente por causa do papel inovador da China socialista dentro do sistema mundial atual. Desta vez a principal potência emergente não é um país capitalista com novas pretensões imperialistas, como foram a Alemanha e os EUA. Este último, apesar dos disfarces. A China, por outro lado, é uma nação socialista, que se propõe à maior integração mundial, à construção de governanças mundiais reais, a acordos e investimentos econômicos de ganha-ganha, ao desenvolvimento com qualidade e à prosperidade para todos. E, seja como for, é inevitável o novo avanço da social-democracia, ou do socialismo, como queiram. A grande crise econômica mundial atual não terá resposta efetiva, a não ser de destrutividade realmente extrema, sem este novo avanço socializante dentro do sistema capitalista mundial. E ele já está em curso. Já se pode notar, por exemplo, e simbolicamente, que as ameaças fascistas no plano politico estão, no momento, em baixa, depois de terem ganhado grande projeção mundial nas últimas décadas. Creio que ninguém deve discordar que várias eleições recentes, aqui nas Américas e mundo afora, têm confirmado uma retomada das forças políticas mais à esquerda, com derrotas, ou contenção, pelo menos, das forças de extrema direita. Com certeza, foi emblemática a eleição recente à presidência do Brasil, com a vitória do Lula, a derrota do Bolsonaro e o fracasso das ridículas tentativas de golpe do seu grupo de poder; e, antes disto, a derrota do Trump e a, também ridícula, tentativa de golpe nos EUA; e agora, mais recentemente, os diversos golpes ou revoluções anticoloniais do centro/norte da África. Todos estes são, eu creio, momentos exemplares deste processo. Tudo isto está no contexto da resolução da crise econômica atual, no qual, é claro, a China cumpre hoje um papel mais fundamental do que qualquer outra nação cumpriu antes. Isto porque a China é o maior parceiro comercial e o maior investidor externo da grande maioria dos países e, ela própria, avançou muito e se direciona a avançar ainda mais no sentido socializante de prosperidade para todos os 1,4 bilhão de pessoas que lá vivem. A minha aposta então é que estamos, mais uma vez, vencendo o fascismo no cenário mundial e isto resultará em ganhos também aqui no Brasil, na medida que avançamos no sentido socializante, tanto no mundo em geral, quanto aqui no Brasil. Não tanto por nossas virtudes, nem por nossos defeitos, que seja, de modo predominante, mas sim pelo movimento histórico do sistema mundial. O movimento mundial é socializante. Estamos no começo do fim de onda de predomínio liberal e no início da ascensão de uma nova onda socializante. Neste momento não é de se estranhar que surjam, como uma verdadeira necessidade estrutural, as forças do fascismo e da guerra. O atual momento de predomínio liberal veio desde o começo da década de 80 do século passado e agora está chegando ao seu fim, sendo superado por um novo momento de predomínio socializante, social-democrata e socialista. Este movimento, em que a China cumpre hoje um papel absolutamente central, está sendo promovido pela grande crise econômica do capitalismo mundial em que nos encontramos desde o fim da primeira década deste século. A crise do sistema capitalista mundial e a ascensão da China, como um novo centro da economia global, têm mostrado ao mundo, novamente, os limites da estrutura e da resposta social às crises econômicas sob o capitalismo liberal e estão reforçando a escolha histórica pela resposta socializante, social-democrata ou socialista, às crises capitalistas. A redistribuição de renda, a maior proteção aos trabalhadores e a promoção social em geral, a integração mundial da economia e a proteção do meio ambiente, por exemplo, ganham, novamente, mais força ideológica e objetiva. E terminarão por se impor em um nível mais alto do que o atual, no próximo ciclo histórico socializante, que está se iniciando. Apenas grandes guerras mundiais podem atrasar este processo, que já está em movimento, mas, acredito que nem elas poderão impedir o seu desenvolvimento. É neste grande processo histórico que aposto as minhas fichas que nós, aqui no Brasil, também estamos entrando num grande ciclo histórico de melhora da qualidade de vida das massas populares, de desenvolvimento social, de desenvolvimento do nível educacional e tecnológico, de desenvolvimento da economia e de redução da violência e do abuso na nossa vida social cotidiana. Acredito que estamos entrando neste ciclo de avanço e superação de práticas e instituições fascistas dentro da nossa sociedade, porque estamos dentro deste processo mundial, deste novo ciclo de avanço mundial socializante, que está se iniciando agora, nos últimos anos, enfim. Grande parte da nossa condenação a um fascismo cotidiano “eterno” está certamente, na nossa condição, posição, ou inserção, como queiram, no sistema capitalista mundial, no sistema imperialista mundial, colonial e pós-colonial. É aí que somos condenados ao atraso e à pobreza. Nós e todas as outras nações do mesmo rank, ou ainda abaixo do nosso nível, no jogo econômico e de geopolítica mundial. Nós e os países mais pobres e atrasados ainda. Todos, até agora, com massas da população condenada a condições de vida e dignidade e expostos a níveis de violência e abuso que são inaceitáveis no mundo dos países centrais, ricos. A saída progressiva do mundo do sistema imperialista, pela nova onda socializante mundial, que está se iniciando, será também a nossa saída deste passado fascista, “eternamente presente”, de violência e abuso na estrutura da nossa vida social.