segunda-feira, 25 de março de 2024

MUITO BARULHO POR NADA

Parece que toda a polêmica e a grande mobilização, ideológica, midiática, em torno da votação do STF sobre a descriminalização de pequenas quantidades de maconha, realmente, não passou e não vai passar de uma agitação disfuncional e sem quaisquer efeitos práticos positivos. Não havia e não há, ainda, um acumulado mínimo de consciência crítica e discernimento racional sobre o tema na nossa sociedade. Não era a hora, portanto, desta temática receber um tratamento sistêmico, nacional, seja pelo judiciário, seja pelo Congresso. Não há condições objetivas, sociais, para isto. Não haverá, não deve haver, qualquer avanço neste nível no nosso país, no ano de 2024. Não há uma base real para este tipo de ação agora, porque estamos em um período muito delicado e difícil de início de acerto de contas, ideológico e institucional, com o fascismo, que não é apenas político, mas estrutural na sociedade brasileira. E estamos em um ano de eleições locais no nosso país. É claro que trazer agora pontos muito escandalosos da pauta de costumes e de direitos civis, como são as questões do aborto e das drogas, para o plano nacional, pretendendo decisões institucionais válidas para todo o país, sem o acumulado necessário, só vai fortalecer os partidos e os políticos de extrema direita e os oportunistas. Esta é, hoje, a única chance que resta a estes partidos. Vencer pelo escândalo nas pautas de costumes. Eles realmente não têm mais bandeiras, não apresentam e nem podem mais apresentar alternativas reais para o desenvolvimento econômico e social e isto está cada vez mais evidente. No mundo todo, a questão da segurança, do emprego da violência estatal, sobretudo no combate à criminalidade em geral, ao tráfico de drogas, em especial e às migrações, associada a toda uma pauta de valores religiosos e moralistas é, somente, o que restou para a direita em geral, sob a liderança inconteste do polo do liberal-fascismo, do neofascismo. Para mim está claro, portanto, que, agora, dificilmente as pautas progressistas poderão avançar no plano nacional, seja no judiciário ou no Congresso Nacional e, ao contrário, corremos o risco de revezes, de perdas reais nesta disputa ideológica e institucional, com consequências nefastas também no plano político eleitoral. O STF, contudo, pôs em pauta a descriminalização das pequenas quantidades de maconha, assim como fez com o tema do aborto, mais para atender ao timing de uma ministra que saía do que dinâmica real da sociedade em que eles estão mergulhados. E, como era previsto, teve reação e os pedidos de vista vão se sucedendo. Tudo exatamente como era de se esperar. E, também como era de se esperar, já tem gente cravando que a votação não termina este ano. Eu acredito que não vai mesmo. Mas, isto nem importa muito. Os esculachos, os flagrantes forjados, as prisões ilegais, as execuções sumárias, vão acabar porque se liberou uma pequena quantidade de maconha para porte pessoal? Você realmente acredita nisto? Vai haver desencarceramento em massa, vamos soltar todos os presos por tráfico de maconha com pequenas quantidades? Hoje, eu não creio em nada disto. Se você me perguntar se eu sou a favor; é claro que sou a favor da liberação do porte de drogas, em geral, em quantidades suficientes para o uso pessoal, com certeza. Parece realmente uma boa medida, de respeito e proteção aos cidadãos, às pessoas de bem, que são usuárias de droga. E são muitas, nós sabemos disto, muitas, em todas as classes sociais. E, se você me perguntar também se eu sou a favor do livre cultivo de maconha, é claro que sou a favor da mais ampla liberdade de cultivo. Mas, num julgamento como este do STF, não se trata de uma questão de princípios, de uma questão ideológica, somente. Esta é uma questão social gravíssima, que atravessa a nossa sociedade, com um rio de sangue e barbárie, de cima abaixo. A nossa sociedade precisa da violência cotidiana, em forma extrema, para se auto justificar e se auto sustentar, no modelo em que existiu até agora e que ainda persiste. Sob a camada moral e policial do combate, da guerra, às drogas, nós temos um instrumento muito eficiente de terrorismo constante sobre populações marginais ou marginalizadas na nossa sociedade. Sob a armadura da religião e da justiça, a guerra às drogas opera na disputa de terras, opera na disputa de poder em todos os ambientes, opera no estabelecimento e na manutenção da hierarquia social, da hierarquia étnica e opera, muito, no controle e ordenamento dos comportamentos pessoais. A guerra às drogas é um instrumento útil demais para o sistema. A ideologia moral contra o uso de drogas é útil e eficiente demais para ser descartada. Neste ponto todos se escandalizam com tudo. Mas, muito poucos se escandalizam com as mortes em massa, com o encarceramento em massa e com toda a violência cotidiana que são impostos pela criminalização das drogas. Faz-se, cotidianamente, um terrorismo extremo, absurdo, sobre os riscos e danos das drogas e sobre a altíssima periculosidade, portanto, de se vender tais produtos. Falsidade hipócrita, alimentada todos os dias, por um sem número de bebuns, de viciados em todo o tipo de droga e perversão, pessoas sem moral alguma, abusadores, pedófilos, ladrões, assassinos, todos enchem a boca para tocar o terror contra as drogas e os drogados. E a mídia aplaude e repercute. Jornalistas e deputados, influencers e pastores, padres e até traficantes, botando moral contra os drogados. Difícil saber qual o mais pervertido, qual o mais degenerado, qual o mais dependente. Ignorantes, idiotas. Como pode um bebum falar mal de liberar a maconha? Deixa de ser burro e não passa essa ignorância para os seus filhos, não. E esses viciados em cigarro, então? E esses dependentes de pílulas psiquiátricas? Vocês estão doidos. E doentes. E querem continuar impondo sua insanidade, suas doenças, sobre todos os outros. Isto é o óbvio, do ponto de vista da saúde orgânica, do seu corpo. É incontestável. Não há nem como comparar o alto risco de todas estas drogas ao baixíssimo risco da maconha. Mas, a questão não é de racionalidade, não é de bom senso. O próprio setor de saúde, que sabe, com toda a certeza, a veracidade destas minhas afirmações, quando veio a público, institucionalmente, se posicionar sobre o julgamento do STF, foi para condenar. Na área da saúde, até agora, foi apenas a ideologia fascista que se expressou publicamente. E é sempre assim. Nesta área, o maior omisso, o maior irresponsável, tecnicamente e socialmente, é realmente o setor de saúde pública. Nós sabemos, com certeza, ou deveríamos ter a obrigação de saber, com toda a certeza, que a guerra às drogas mata, incapacita e interdita muitas dezenas, ou centenas, de milhares de vidas, mais do que as próprias drogas o fazem. Nós também teríamos a obrigação de saber que o maior peso em saúde pública, a maior carga em adoecimento e morte, é, de longe, devido às drogas permitidas e prescritas. E, por fim, temos a obrigação de saber também que a maconha carrega risco de saúde pública infinitamente menor que todas estas outras drogas. É nossa obrigação, do setor de saúde pública, trazer esta realidade ao debate e estabelecer critérios técnicos adequados, considerando os riscos inerentes a cada droga. O debate, o confronto ideológico jamais vai cessar, mas, o setor de saúde pública, é, obviamente, o único que pode e deve estabelecer parâmetros e critérios técnicos, de saúde pública, para a condução desta questão na nossa sociedade. Mas, estamos omissos e estamos sendo coniventes com políticas não científicas que levam à perda de dezenas de milhares de vidas todos os anos no nosso país. A força ideológica desta questão e a névoa de terror moral e policial que ela carrega, nos cegam e imobilizam. É claro que seria uma grande ingenuidade acreditar que apenas o estabelecimento de critérios técnicos, médico-científicos, quanto à produção, acesso e uso de drogas psicoativas, poderá ser o suficiente para superar toda a estrutura e a dinâmica sociais que se forjaram sob as justificativas da guerra às drogas. Mas é um passo muito importante no sentido positivo, ao trazer o protagonismo neste campo, que hoje está, indevidamente, entregue a pastores, a políticos ou a policiais e juízes, para quem é de direito. Isto é matéria rigorosamente técnica, de saúde pública, e não podemos abrir mão disto. Muito mais ingênuo ainda é acreditar que apenas esta descriminalização de pequenas quantidades, em julgamento no STF, poderá mudar grandes coisas na realidade do conflito social e da guerra às drogas no Brasil. Do mesmo modo, a reação do Congresso e a pretensa PEC, que criminalizará o porte de qualquer quantidade de drogas, também não deve mudar grandes coisas, se vier realmente a ser aprovada. Hoje isto parece muito mais um jogo de cena para barrar a votação no STF. Mas, mesmo que seja aprovada, isso também mudará pouco, ou nada, na realidade atual. De um jeito ou de outro, o escrutínio policial e judicial para determinar se se trata de uma situação criminosa, de tráfico, ou não, continuará sendo decisivo, em todos os casos. E, adivinha quem será liberado todas as vezes e quem será criminalizado todas as vezes. Ninguém tem dúvidas sobre isto. Aqui no Brasil, a guerra contra as drogas nunca visou, nem jamais visará, o controle ou a eliminação do comércio e do uso das drogas ilícitas. Isto tudo é uma farsa que tem sentido apenas dentro das lógicas fascistas de terrorismo social, que são tão importantes nas sociedades fundadas em extrema desigualdade e violência social, como é a nossa. Você duvida disso? Então considere, por um minuto que seja, as seguintes questões. Por que, em todos os finais de semana, vão acontecer milhares, ou até dezenas de milhares, de festas e baladas, com os endereços conhecidos, em todo o país, de todos os tipos e para todas as classes sociais, regadas a drogas ilícitas, livremente acessíveis e consumidas abertamente, sem qualquer restrição maior? E, por que as biqueiras de venda de drogas funcionam diuturnamente, há anos ou décadas, em pontos fixos, muito bem conhecidos, em todas as cidades médias e grandes do país? É óbvio que tudo isto só acontece, deste modo, porque a guerra contra as drogas aqui e, em geral, mundo afora, é uma farsa completa. As dezenas de milhares de mortes e as centenas de milhares de encarceramentos, assim como as toneladas e toneladas de drogas apreendidas, tudo isto é parte de uma grande farsa que absolutamente não tem o menor intuito de barrar de fato a venda e o consumo de drogas ilícitas Os objetivos da necropolítica da guerra às drogas são outros e eles continuarão a ser perseguidos e atingidos, independente destas marolas que o STF e o Congresso estão fazendo na atualidade. Desculpem-me dizer, mas os soldados que estão no combate nesta guerra, que põem a sua vida em risco, que sofrem danos reais, estão fazendo papel de bobo, eles e seus familiares e amigos, todos estão sendo enganados pelo sistema que os faz perseguirem pessoas envolvidas com drogas muito mais seguras do que aquelas que são legalmente comercisalizadas. Muito mais seguras do que aquelas que são empurradas para eles mesmos nos ambulatórios médicos. Te enganam e te usam de todos os lados. Todos sabem e todos fingem não saber. E uns, coitados, muitos, na verdade, vão morrer por isto. E por quê? Todo o sistema de combate às drogas e de controle dos drogados na nossa sociedade é uma farsa e você sabe disto. Se não, vejamos, então, como pode alguém dar a própria vida ou tirar a vida de outro no combate à maconha, uma planta que certamente é muitas vezes mais segura do que o álcool, o cigarro e as pílulas psiquiátricas? Quem faz isto, quem cria e sustenta estas farsas, está sendo muito irresponsável. Que o Judiciário e o Legislativo naveguem nesta irresponsabilidade, que a sociedade toda faça isto, são condições ideológicas da realidade. Mas tem alguém que não deveria falhar neste aspecto e que, principalmente, não deveria continuar perpetuando o erro. São, repito, os setores técnicos responsáveis, de saúde pública. Todas as condições conjunturais que eu descrevi acima e o impacto social extremamente destrutivo desta política antidrogas estúpida e assassina, ressaltam ainda mais a relevância e a oportunidade de ação pelo setor de saúde pública, o grande omisso, o grande irresponsável e o grande covarde nestes debates. Deixa-se a direita fascista se manifestar sem contraponto institucional e, muito pior, dá-se o endosso técnico institucional para toda esta excrescência que é a guerra às drogas. Nunca podemos esquecer que é a Anvisa, que é a saúde pública do nosso país, quem estabelece que a maconha é droga de alta periculosidade, portanto, ilícita e que o álcool, a nicotina e o citalopram, por exemplo, não são e, ao contrário, são liberados para venda sem restrições. Isto é um absurdo completo do ponto de vista médico-científico e está nas mãos do executivo mudar. Para que isto ocorra, precisamos fazer com que a posição técnica, científica, médica, real, verdadeira, vença a farsa, a paranoia, a hipocrisia e o escândalo moral que imperam, não, diretamente, na sociedade em geral, nem neste Congresso carregado de dementes, mas, antes de tudo, nos próprios órgãos técnicos voltados para o controle de drogas e no setor de saúde pública em geral.