segunda-feira, 31 de julho de 2023

E LEGALIZA O ABORTO! E LEGALIZA A MACONHA!

O Conselho Nacional de Saúde aprovou e a ministra da saude assinou uma resolução com a recomendação pela legalização da maconha e pela legalização do aborto. Uma resolução, uma recomendação assim, sem instrumentos de execução, é coisa que, em geral, eu não dou atenção, pois isto não tem efeito prático. Mas estas são duas posições de saúde pública, posições políticas e existenciais também, que eu sempre defendi e que não via brecha para serem de fato postas em questão aqui no Brasil. Lembro que em 2013 (eu fui daqueles que saiu às ruas em 2013), quando a multidão ficava em silêncio, eu gritava bem forte: E LEGALIZA A MACONHA! E LEGALIZA O ABORTO! E repetia várias vezes. Dava pra ver o espanto e eventual reprovação nas pessoas. Mas eu seguia gritando, sobretudo debaixo dos viadutos e dentro dos túneis, onde tinha mais ressonância: E LEGALIZA O ABORTO! E LEGALIZA A MACONHA! Mas, naquela época eu não tinha a menor expectativa de ver estas questões colocadas na pauta institucional da saúde pública no Brasil. O conservadorismo aqui é muito predominante. Vale dizer: a ignorância e a manipulação ideológicas aqui são grandes demais. Com certeza, a derrota do fascismo político nos deu agora mais possibilidade de colocar a questão no cenário nacional sob o prisma técnico, responsável, de saúde pública. Como agentes de saúde pública nós não podemos ignorar o ônus em morte, invalidez e adoecimento que são impostos pelas atuais politicas antidrogas e antiaborto aqui no Brasil. E, como agentes de saúde pública, temos é que dar condições de execução a estas diretrizes de liberação no nosso país. Devemos, como setor de saúde, levar a lei e a ideologia vigentes ao seu limite, no atendimento destas que são diretrizes de saúde e dignidade humanas. A Anvisa deve retirar os canabinoides e a maconha da lista de drogas ilícitas e os serviços de saúde pública devem fornecer todos recursos de contracepção, conforme critérios de saúde, em primeiro lugar. Mas, infelizmente, acho que ainda estamos longe disto. Então, ainda vamos ver a ideologia conservadora nos impor estas políticas de morte, estas verdadeiras necropolíticas antiaborto e antidrogas ainda por algum tempo . O setor de saúde seguirá impotente nessa guerra ideológica e política. Temos mais possibilidade pelo judiciário, pelo STF, talvez. Mas nada muito sigbificativo, não é?

sexta-feira, 28 de julho de 2023

A Necropolítica Antidrogas é (Ir)Responsabilidade do Setor de Saúde

Se algo pode ser chamado de necropolítica com toda razão é a atual política antidrogas. E os agentes de saúde pública têm uma grande responsabilidade nisto, que não pode ser ignorada. São milhares de mortes e milhões de vidas e famílias destruídas todos os anos em nome da guerra contra as drogas. Um terror constante e uma propaganda contínua fazem a população adotar a violência social extrema como a resposta necessária para um problema fictício. Não existe um grave problema de saúde pública causado por drogas ilícitas no Brasil. Mas a ideologia dominante faz parecer que se não houver uma guerra, contínua e sem limites de violência, contra as pessoas envolvidas com drogas, as famílias e a sociedade serão destruídas pela dependência química e pelo uso abusivo, especialmente por parte dos jovens e adolescentes. Haveria um risco elevadíssimo de dano grave à saúde pública e ao próprio sistema social se não houvesse essa guerra civil não declarada, mas contínua. Falso, isto é falso. Isto é fake news. E assumir isto como uma verdade, repetindo sem parar na cabeça dos nossos jovens e da população em geral, é uma grande irresponsabilidade de todos os formadores de opinião sobre drogas. Religiosos, agentes de segurança, educadores, influencers digitais e membros da imprensa, todos estes têm o direito de esconder o seu preconceito e a sua má-fé sob o manto da ignorância. Mas os agentes de saúde não. Os agentes de saúde pública não podem esconder as suas posições absurdas e estúpidas nas brumas do desconhecimento. Eles têm a obrigação de saber e são, por isto mesmo, os principais responsáveis (ou, irresponsáveis, se você preferir). Não é possível ignorar a imensa desproporção entre os danos causados pela guerra às drogas e pelas drogas permitidas em relação aos danos causados pelas drogas proibidas. A opinião pública pode não saber, ou fingir que não sabe, mas os agentes de saúde, especialmente da saúde pública, não podem pretender ignorar que as drogas legais e a guerra às drogas causam muito mais mortes e muito mais dano à saúde pública e à vida social em geral, do que as drogas proibidas. E se eles não podem ignorar esta realidade, mas, ainda assim, se posicionam em alinhamento e dão base para a atual política de drogas no nosso país, é porque os nossos agentes e instituições de saúde pública estão sendo omissos e realmente coniventes com tudo isto. Nesta questão das drogas, os representantes ciência e da medicina, as instituições de saúde pública do nosso país (e mundo afora) têm cedido, sistematicamente e por décadas, ao preconceito moral e religioso e às necessidades de controle social do sistema, em vez de exercerem suas funções com a responsabilidade técnica requerida. Associações e conselhos de medicina, entre outros e, sobretudo, a Anvisa, têm se posicionado de modo irresponsável, sendo parte relevante da sustentação de uma política assassina, sem base científica e sem racionalidade em termos de saúde pública. Não há razão médica alguma, sob qualquer prisma, em termos toxicológicos, de risco e de dependência, que possa justificar a legalidade das bebidas alcoólicas e do cigarro e, ao mesmo tempo, a ilegalidade da maconha, por exemplo. O fato é que os casos de dependência, os casos de adoecimento e as mortes por álcool e cigarro sobrepujam aqueles devidos à maconha em uma escala de dezenas de milhares de vezes. Muitos podem raciocinar que isto se deve ao fato que a maconha é menos utilizada por ser proibida e por isto causa menos dano à saúde pública do que as bebidas alcoólicas e o cigarro. O senso comum pode até pensar assim. Mas, não os profissionais de saúde pública. Nós sabemos que isto ocorre justamente porque os canabinoides são infinitamente menos tóxicos e causam menos dependência do que o álcool e a nicotina. A maior disseminação do uso de maconha, na medida em que compete com estas e outras drogas letais, inclusive medicamentos, leva a ganhos e não a perdas de saúde pública. Portanto, não é apenas agora, ao proibir a importação de flores de maconha para o uso medicinal, que a Anvisa está sendo irracional e contraditória em relação ao seu mandato de defesa da saúde pública. Não, a irresponsabilidade técnica da Anvisa e da institucionalidade médico-científica, em geral, nesta área, vem de muito antes, vem da própria proibição da maconha. Os Conselhos de Medicina também fazem a sua parte nesta cruzada insana e continuam assediando os médicos prescritores de canabinoides, buscando intimidar e impedir a ampliação do acesso aos produtos de maconha (Cannabis) medicinal aqui no Brasil. Recentemente um colega médico prescritor de Cannabis foi preso e, até onde eu sei, permanece preso, de modo arbitrário, enquanto escrevo este texto. Parece que agora há um grande esforço para se tentar separar o uso medicinal dos canabinoides do seu uso recreacional ou social. Acreditam que a regulamentação deve buscar traçar limites rigorosos para separar a medicina da droga. Isto é uma tolice e uma burrice, com consequências trágicas. Não é possível separar completamente os usos medicinais e sociais ou recreacionais da erva e de seus derivados. E não há justificativa objetiva para a proibição da maconha de modo algum. Ao proibir e criminalizar um agente neuro e psicoativo de baixo risco e permitir o livre uso de outros de risco muito mais alto, a Anvisa e toda a institucionalidade médica atuam contra o seu mandato social e contra a própria ciência. Por covardia ou por má-fé, sustentam a proibição de algo mais seguro e endossam a liberdade de uso de algo muito mais arriscado e danoso para a saúde e a qualidade de vida das populações. Para se adequarem aos padrões ideológicos e aos preconceitos da sociedade, estas instituições de saúde pública têm que virar as costas e abandonar o seu conhecimento e a sua responsabilidade. E é isto justamente o que elas têm feito ao longo das últimas décadas. A absurdidade do ponto de vista técnico é cada vez mais evidente e, a cada dia, o equívoco da proibição da maconha em uma sociedade que permite o uso de cigarros e bebidas alcoólicas é mais gritante. Os principais riscos à saúde apontados pelo uso da erva como droga social se mostram inconsistentes e sem comprovação científica. Um bom exemplo é o alegado aumento do risco de esquizofrenia devido ao uso de maconha. Nunca foi suficientemente comprovado e as pesquisas mais recentes indicam que não existe. Ao contrário, a experiência clínica mostra que a maconha, os canabinoides, podem ser um excelente recurso para o tratamento dos casos de esquizofrenia e também para o tratamento dos quadros psicóticos por outras causas, como o autismo e a doença de Alzheimer, por exemplo. Com uma toxicidade também infinitamente mais baixa do que os medicamentos antipsicóticos, correntemente adotados nestes casos. Só há realmente uma posição médica responsável em relação à regulamentação da maconha e esta é a ampla liberação do seu uso social, além do medicinal. Qualquer coisa diferente disto é uma concessão irresponsável das autoridades e instituições médicas ao preconceito e à ignorância, cuja consequência são dezenas de milhares de prisões injustas e mortes desnecessárias, todos os anos no nosso país.

domingo, 16 de julho de 2023

A superação do capitalismo. O processo econômico histórico e seus fundamentos: ego e sistema

A história nos permite concluir que o capitalismo é uma forma de organização da produção e da vida da social em geral, uma forma do sistema social, que permite, promove e, até, assegura o desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, ainda que de modo muito contraditório e violento. De fato, o capitalismo tem propiciado o desenvolvimento econômico da humanidade, com uma escala, uma aceleração e uma intensidade que, ao que parece, nunca existiu antes na história conhecida das civilizações. De um modo sintético, é certo dizer que a dinâmica econômica capitalista, em sua estrutura essencial mesma, promove o aumento geral da riqueza humana. Com o livre mercado, a competição entre os interesses privados, a luta de cada indivíduo, de cada família e de cada empresa pelos seus interesses próprios ou exclusivos, resulta em aumento progressivo da produção social, ou seja, da riqueza de todos. A livre competição e a livre acumulação capitalistas promovem alguma racionalidade econômica na alocação dos recursos sociais e impulsionam o desenvolvimento da produtividade social, da ciência e da tecnologia, da riqueza social, enfim. Isto ocorre porque, sem o desenvolvimento constante, há também um constante risco, a quase certeza, de que qualquer empreendimento capitalista será superado por outros no mercado, até sucumbir completamente. Um dos aspectos centrais da lógica econômica capitalista é este impulso à reprodução e acumulação de capital que a competição no mercado impõe às empresas, ao centros de produção capitalistas e, por extensão, também aos centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. É claro também que esta lógica que impulsiona ao desenvolvimento da produção só pode se realizar de fato em um mercado consumidor igualmente expansionista. Ou seja, a economia capitalista é, inexoravelmente, uma economia de massas expansionista. A economia capitalista apenas se realiza através do consumo das massas e, para ser mais preciso, do consumo das massas em expansão. A economia capitalista, portanto, ao contrário de modos de produção anteriores, tem como condição intrínseca a produção em massa expansiva, logo, correspondentemente, o consumo de massas também expansivo, apesar das crises sistêmicas periódicas e da paradoxal pobreza que o sistema capitalista também produz e reproduz constantemente. São estes os motores internos da economia capitalista para o desenvolvimento da produção e para a ampliação do consumo das massas, ou seja, para o aumento da riqueza geral das sociedades. E com certeza são eles que fizeram, e ainda fazem, a vitalidade histórica do capitalismo. Mas, o capitalismo, por suas contradições e insuficiências, é profundamente exploratório, injusto e também destrutivo e, ao desenvolver a produtividade social, ao desenvolver os meios de produção da humanidade, cria também as condições para que o modo de produção socialista progressivamente o supere. O capitalismo desenvolve os meios, os recursos materiais e intelectuais, os sistemas de produção e as bases científicas e tecnológicas para a produção social de nível superior, mais consciente e organizada, garantindo um desenvolvimento mais seguro e a prosperidade mais ampla e disseminada na sociedade. Por sua estrutura econômica mesma, o capitalismo pressiona para a acumulação constante dos capitais privados, tendendo, portanto, necessariamente, à concentração de riquezas. A acumulação ilimitada, através da livre competição no mercado, tende a produzir uma imensa concentração das riquezas acumuladas na mãos dos capitalistas e, objetivamente, de um número relativamente pequeno destes. Há, portanto, um impulso constante para a concentração dos ganhos de riqueza nas mãos de poucos e, correspondentemente, a restrição da riqueza nas mãos das massas. Além disto, o direcionamento estratégico da produção através da livre competição das empresas privadas no mercado capitalista resulta em um alto grau de irracionalidade geral no sistema produtivo e a própria alocação dos recursos produtivos exclusivamente por mecanismos de mercado termina sendo muito falha, envolvendo o sistema em crises frequentes, algumas de alta destrutividade sistêmica. O sistema capitalista mundial é marcado por altos níveis de pobreza e violência, que lhe são estruturais. As guerras são constantes. Nas grandes crises econômicas o capitalismo mostra, para além de qualquer dúvida, as suas grandes falhas e o seu fracasso na alocação e na reprodução dos recursos sociais de produção. Mas, ainda assim, a economia capitalista consegue, contudo, persistir em desenvolvimento acelerado, quando consideramos o longo curso da história. Eu entendo que isto só tem sido possível pelos instrumentos socialistas que se desenvolveram dentro do sistema econômico capitalista mundial. Essas tendências autodestrutivas para o sistema econômico mundial e as suas terríveis consequências sociais, inerentes à lógica própria da economia capitalista, têm sido mitigadas e corrigidas com conquistas sociais que controlam e reparam as desigualdades de riqueza e poder e as desordens econômicas que a alocação incorreta dos recursos e o próprio empobrecimento relativo das massas causam. O socialismo se desenvolve dentro e em contraposição ao capitalismo. Como uma necessidade para um mínimo de estabilidade social e para própria subsistência do sistema de produção social mundial e, simultaneamente, surge como o desenvolvimento da nova forma social, do novo sistema social e a superação do próprio capitalismo. Considerando-se os últimos 150 anos, por exemplo, não há como negar que tenha sido um período de grande socialização do capitalismo. Não há dúvidas que, neste período, se desenvolveram, dentro do sistema capitalista mundial, muitos recursos de proteção e de promoção social e de regulação pública das finanças e da produção. Este é justamente o período de consolidação de um sistema econômico-social capitalista mundial. Um período de imenso desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo e de grande integração da economia mundial, que pode ser chamado de capitalismo contemporâneo ou sistema capitalista mundial contemporâneo. Neste período há também um incontestável crescimento de recursos e instrumentos de controle social da produção, assim como de proteção e promoção dos grupos desprotegidos pela dinâmica social capitalista. Todos sabemos que estes recursos e instrumentos só se desenvolvem de modo parcial e contraditório dentro do sistema capitalista mundial, através de lutas e conflitos sociais, muitas vezes extremos, com grandes idas e vindas, ganhos e perdas históricas, tanto no interior dos países quanto no plano internacional. Mas, também é óbvio que, no cômputo geral, eles realmente se desenvolveram muito neste período e de tal modo que parece evidente que o sistema capitalista mundial chegou até aqui por causa do desenvolvimento destes recursos públicos regulatórios. Sem estes instrumentos e recursos a pobreza e as crises teriam sido muito piores ainda e as guerras, civis e internacionais, ainda mais frequentes e destrutivas. A economia socialista, como a experiência chinesa comprova, é capaz de produzir uma melhor alocação de recursos, com maior benefício social, através da associação entre o controle estratégico e financeiro pelo Estado e um bom funcionamento da economia de livre de mercado, nos outros níveis da economia. O socialismo, com o funcionamento do livre mercado submetido ao direcionamento do planejamento central da economia e ao forte controle regulatório e financeiro estatal, conseguiu produzir uma alocação mais efetiva dos recursos produtivos sociais, uma alocação mais produtiva e mais segura, de modo a promover o desenvolvimento contínuo e acelerado por período de tempo que ainda não havia sido conquistado na história das potências capitalistas. É o que a experiência chinesa mostra, sem sombra de dúvidas. A experiência social-democrata nos países centrais e até mesmo as tentativas extemporâneas de implantação do comunismo já mostravam essa possibilidade, ainda que de modo muito limitado e irresolutivo. Com certeza não pareciam respostas suficientes para o sistema econômico mundial, E, quando as forças produtivas mundiais deram novos saltos, as estruturas sociais-democratas e o comunismo precoce surgiram como limites e foram envolvidos e vencidos pela nova onda liberal, pela onda neoliberal, desde o início dos anos 80 do século passado. Neste mesmo tempo a experiência socialista chinesa decolava para um período de desenvolvimento produtivo e social continuado e acelerado sem precedentes na história contemporânea. Isto foi possível pela análise correta da realidade econômica mundial do seu tempo e pela correta compreensão do caráter do socialismo, como sendo uma economia de transição e superação do capitalismo, ainda dentro do sistema capitalista mundial, ainda capitalista, portanto. A grande potência emergente no mundo atual é socialista. Sim, a China é socialista e foi justamente pelo reconhecimento consciente de sua condição socialista que ela arrancou e persistiu em desenvolvimento contínuo e acelerado nos últimos mais de 40 anos. A China, na virada da década de 1970 para 80, reconheceu que era impossível e irracional tentar implantar o comunismo no país naquele momento histórico, era impossível pelos recursos disponíveis, era impossível pelo nível de desenvolvimento naquela época e também porque é impossível e irracional tentar implantar o comunismo em um só país, ou numa parcela limitada e secundária do sistema capitalista mundial. O comunismo deve pressupor um desenvolvimento ainda bem maior das forças produtivas em toda a humanidade e uma integração mundial também muito mais ampla e intensa do que aquela que havia no final dos anos 1970. E até mesmo do que já temos na atualidade. Portanto, a China e o mundo, obviamente, teriam que passar por um período de transição de muitas décadas ou de alguns séculos, pelo menos. A China teria que ser ainda capitalista por um longo tempo. Mas, colocando a dinâmica capitalista de mercado sob o controle estratégico e financeiro do Estado socialista. E foi isto que propiciou o sucesso econômico contínuo e intenso da China, desde então e até os dias de hoje. Este sucesso já não pode ser ignorado. E ele expõe, com uma clareza equivalente àquela da luz solar, incontestável, que o controle estratégico e financeiro da economia, por forças sociais além do mercado, realmente pode ser, é, mais efetivo que a regulação apenas pelo mercado. A história do sistema capitalista contemporâneo já mostrava, aliás, que a regulação pública é, na verdade, necessária para a simples continuidade do sistema, dada a gravidade dos desequilíbrios e das crises do sistema que, sem esta regulação, assolariam ainda mais a economia mundial. Mas, ainda restava muita dúvida. Muitas vezes parecia que esta regulação apenas criava mais problemas e entraves na economia e que a liberdade do mercado seria o único recurso realmente eficaz na regulação da economia. Ao contrário, o que a história já nos mostrava é que o capitalismo deixado por si mesmo termina se mostrando um sistema com muitos erros na alocação dos recursos sociais de produção e com uma tendência inexorável para a desigualdade extrema e para grandes crises econômicas cíclicas, com consequências muito danosas para o próprio desenvolvimento econômico e catastróficas para a sociedade, sobretudo para os trabalhadores e pobres. Na verdade não teríamos chegado até aqui sem os diversos recursos e instrumentos públicos de regulação econômica e proteção social que se desenvolveram nos últimos 150 anos. Tudo isto que estava ainda um tanto obscurecido, confuso e incerto até a ascensão inquestionável da China socialista, agora não pode mais ser posto em dúvida. Hoje está claro, estamos vendo, que a China socialista deu passos significativos para a superação do capitalismo enquanto os países que persistiram pretendendo realizar uma transição completa e imediata, contra a economia de mercado, ou, imediata, terminaram em becos sem saída e regrediram. E, também agora, já podemos entender, com segurança, o significado e os limites da onda neoliberal do final do século passado, que está findando agora. É apenas um movimento ondular característico do processo de desenvolvimento socialista do sistema capitalista mundial. A onda neoliberal da economia mundial representou uma resposta do sistema aos desafios econômicos do momento e deve agora ceder espaço completo à nova onda socialista que já está em franco crescimento no mundo, capitaneada pelo grande desenvolvimento da China e pelo seu papel de locomotiva na integração econômica e social mundial. De fato, nenhuma economia se beneficiou mais da onda neoliberal e da nova globalização que a economia socialista chinesa, Tanto que chegamos finalmente ao ponto em que os liberais, que propugnaram pela globalização, agora regridem para ideologias de desintegração da economia mundial, para o nacionalismo, a xenofobia e o fascismo. É claro que os meios de produção atuais, incluindo as tecnologias de informação e comunicação são muito mais adequadas à economia socialista. Não há como negar que os meios de produção atuais permitem muito melhores níveis de informação social geral e, portanto, de eficiência do planejamento central. O mesmo se pode falar do desenvolvimento teórico e prático dos instrumentos e recursos do sistema financeiro e de regulação e gestão econômica em geral, assim como do nível tecnológico e da integração transnacional da produção social mundial. Tudo isto interessa ao socialismo e tudo isto é, já, condição e resultado do próprio socialismo. É o desenvolvimento do socialismo dentro e em contradição com o capitalismo. Por tudo isto, me parece bem seguro que avançaremos agora ainda mais aceleradamente e intensamente no sentido da superação socialista do capitalismo. Não vamos regredir de um sistema econômico de desenvolvimento das forças produtivas humanas, para um de baixa tecnologia e desenvolvimento. Ao contrário, hoje já é o socialismo que nos permite e progressivamente será ainda mais o socialismo que nos permitirá o crescimento continuado e a prosperidade disseminada. Foi o desenvolvimento da humanidade no capitalismo que nos permitiu o conhecimento dos fundamentos da ciência da história e é este desenvolvimento que agora nos permite uma segurança alta para afirmar que nós não vamos regredir do capitalismo para um sistema social de baixa produtividade e que não promova o desenvolvimento material da humanidade. Agora realmente já me parece bem seguro avaliar que nós, a humanidade, não vamos regredir de um sistema que propicie o desenvolvimento continuado da produção, o desenvolvimento científico e tecnológico da produção social. A partir do desenvolvimento do sistema capitalista a nível mundial, planetário, com a progressiva globalização e integração mundial, as possibilidades de uma regressão deste nível ficam circunscritas a crises absolutamente catastróficas que atinjam, simultaneamente e de modo completamente destruidor, todos os países centrais na produção e desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Portanto, mesmo diante dos riscos, atualmente muito altos, de catástrofes militares e ecológicas, parece muito pouco provável que se destruam as bases da continuidade do desenvolvimento da humanidade, as suas bases científicas e tecnológicas e a capacidade produtiva da humanidade em geral. Não, o nível e a extensão do desenvolvimento da produtividade humana e da integração do sistema econômico mundial os tornam resistentes, mesmo a forças destrutivas extremas. Tomemos, por exemplo, o ocorrido com as grandes guerras europeias e mundiais da primeira metade do século passado. Desde então, ao contrário de regredir, as forças produtivas da humanidade se desenvolveram ainda mais intensa e aceleradamente e o conhecimento, a tecnologia e a própria produção se tornaram ainda mais integrados mundialmente, ainda mais globalizados. O nível do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico a que já chegamos e a sua vasta extensão e integração transnacional em todo o mundo no permitem resistir contra a regressão mesmo diante de crises de ainda mais extensa e intensa destrutividade. E, por fim, o socialismo se desenvolve dentro do sistema capitalista e contra o sistema capitalista, exatamente porque ele nos garante a continuidade do desenvolvimento da humanidade, contra as contradições e a destrutividade, inerentes ao capitalismo. E não regrediremos também porque o desenvolvimento do conhecimento e da tecnologia, o desenvolvimento da riqueza, o desenvolvimento dos meios de produção da humanidade, enfim, correspondem a desejos antropológicos muito profundos, talvez os mais profundos e mais fortes desejos dos seres humanos em geral. O desenvolvimento material da humanidade é uma necessidade crucial para os indivíduos em geral, inscrita nas estruturas fundamentais do ego, mesmo que não tenhamos consciência disto. Na medida em que nosso ego está comprometido com a sua realização pessoal mesma, ele também está comprometido com o desenvolvimento de toda a humanidade. Isto porque o trabalho é a força social que faz o sistema humano desenvolver-se. É pelo trabalho que se desenvolvem as próprias forças produtivas sociais e as condições de existência e realização de cada ser humano. Esta é uma determinação crucial da humanidade, do ser social humano, que se apresenta em nossa longa história e que torna-se claramente perceptível justamente com o desenvolvimento capitalista. Nós, a humanidade, somos fruto do nosso trabalho presente e historicamente acumulado. E é este processo que nos faz, que nos realiza, e cria novas possibilidades de ser. Esta característica, este impulso autoprodutivo do nosso ser, através do trabalho social, é uma força vital de importância máxima para cada ser humano, pois corresponde às mais altas expectativas do nosso ego de se manifestar livre e ativamente na realidade, de se desenvolver e, ao mesmo tempo, de atender ao compromisso com a reprodução e desenvolvimento dos nossos descendentes e da humanidade em geral. O desenvolvimento produtivo da humanidade é o desenvolvimento de cada um de nós, ao menos enquanto possibilidade e projeção de futuro e nós nos identificamos, pelas forças mais profundas do ego, com a perspectiva do desenvolvimento da humanidade e de que, pelo nosso esforço, nós mesmos e os nossos filhos e netos tenhamos melhores recursos, melhores meios e condições de produção e existência que nós tivemos no passado. Portanto, o desenvolvimento produtivo e social da humanidade é algo realmente inscrito em nossos interesses egóicos mais profundos, com a mesma força, profundidade e sentido que a perpetuação da espécie é inscrita no gen. De fato, alguns dos mais fortes desejos do nosso ego convergem para o impulso ao desenvolvimento social. Entre os mais nobres, como aqueles de ser reconhecido, amado, respeitado e de deixar uma marca na história, do mesmo modo que entre os mais perversos, como aqueles desejos de dominação e opressão, de ganância, de ódio e de inveja, E vamos, como ego, desejar infinitamente nos perpetuar na história, na cultura, na sociedade, no sistema, de algum modo, perpetuar o nosso ser e a nossa cultura, o nosso trabalho, a nossa razão e a nossa ideologia. O ego se realiza no sistema. No trabalho e em toda a nossa vida cotidiana. Com tudo o que isto significa de sacrifício e de realização, de prazer e dor. Não é possível de fato eliminar nunca completamente o interesse individual e o interesse social no nosso ser, nunca, eles estão sempre intrinsecamente presentes no nosso ego, no nosso ser, ou na nossa alma, como queiram. É, portanto, no nosso ego, muito antes que no mercado, que a mão mágica do sistema imprime seu selo e nos faz dar a ele aquilo que cada um procura para si mesmo. Isto foi identificado por Hegel, nas sombras, no lusco fusco do seu idealismo, como a astúcia da razão. O desenvolvimento da humanidade nos interessa de modo absolutamente vital, muito maior do que aquele que aparece. Somos compromissados com isto em um nível mais alto que se possa imaginar, mais do que com as religiões ou as pátrias, por exemplo. É a isto que nós, em geral, dedicamos as nossas vidas, sabendo ou não. Porque, de fato, é isto que fazemos todos os dias no nosso trabalho, nas nossas relações sociais, na nossa vida cotidiana. Aí se encontram o heroísmo e a mesquinharia das pessoas comuns, sobre os quais toda a nossa história é construída.