segunda-feira, 13 de junho de 2022

A CRISE ATUAL E SEU SENTIDO HISTÓRICO


Seguimos um complexo padrão de percepção e análise. Nossa lógica é caótica. E nossa certeza frágil e provisória. Mas somos nós que fazemos este movimento, nós que criamos a ação e fazemos o ser avançar.

Não posso discutir nada com quem não entende, porque o nosso tempo é curto.

Agora todos podemos ver como a loucura está presente em nosso mundo, em nossos sistemas, nas nossas vidas, nas escolhas e nas ações. Muitos desprezam sempre o inconsciente em suas existências. Ou o traduzem como mágica, mística e moralismo. 

Não me importa. O inconsciente está ai em cada um dos nossos gestos e, antes, em cada uma das nossas decisões.

Vimos a loucura dominar o mundo na resposta estúpida e ineficiente à pandemia e desbancar a confiabilidade de institutos antes inquestionáveis, como o CDC dos estados unidos, que certamente não foram capazes de estabelecer padrões de reação eficientes e seguros diante da covid.

Neste momento Shangai está saindo de um longo lockdown, de mais de 4 semanas, em boa parte da cidade. Com certeza aconteceram cenas de violência e desespero em função desta atitude extremada de bloqueio à circulação das pessoas e testagem e isolamento dos positivos, compulsoriamente. Mas, certamente, também, isto é muito menos danoso para as pessoas e a economia da China do que foram os meses e meses de quarentena generalizada aqui no Brasil e no mundo ocidental em geral. E muito mais eficaz no controle da epidemia.

Tem alguns princípios da epidemiologia e da clinica que a gente normalmente não erra por seguir. Um deles é que em uma epidemia, diante de uma doença transmissível potencialmente grave, devemos prover o devido isolamento, se necessário, das pessoas contaminadas e, muito eventualmente, de seus contatos. Outro é que diante de qualquer risco ou evento danoso para a saúde ou ameaçador da vida, devemos proteger antes e mais, os mais frágeis diante deste risco ou evento.

Creio que hoje já está claro que onde houve sucesso real no controle da epidemia, sem travar toda a vida e a economia social, foi onde o primeiro destes princípios foi seguido. Enfim, é uma racionalidade epidemiológica básica que foi completamente pervertida, aqui, no mundo ocidental, inclusive nas nações muito desenvolvidas da Europa e nos EUA.

É num destes momentos em que a gente tem a certeza inquestionável de que o inconsciente está operando. Os atores mais sérios, mais capazes, mais responsáveis em todo o mundo ocidental, rico e desenvolvido, batendo cabeças, rasgando seus manuais e se lançando em programas de ações inseguras, não testadas e sem base teórica razoável e muito mais ainda, sem viabilidade e efetividade práticas. Deu no que deu. Mas o que me importa considerar agora não são os péssimos resultados. Mas sim o papel da irracionalidade, do delírio e das mais confusas emoções nesse processo.

O que de fato conduziu as mais brilhantes cabeças e capacidades individuais e dos sistemas do mundo ocidental a tamanha confusão e demonstração de incompetência diante da pandemia?

A gente pode projetar muitas coisas para explicar isto, mas certamente não é fácil achar uma boa explicação para isto dentro dos argumentos epidemiológicos e políticos apenas. Não é por incompetência epidemiológica que o CDC não conseguiu estabelecer uma linha estratégica de controle da pandemia minimamente eficiente, em contraste com a enorme eficiência do sistema chinês, por exemplo. E nem foi pelo bate cabeças político característico das farsas democráticas que isto não aconteceu, não mesmo, pois, de um jeito ou de outro, tanto nos EUA, quanto na Europa e aqui também, as normas técnicas emanadas pelas instituições responsáveis acabaram sendo seguidas. Essas normas mesmas é que eram irracionais, inviáveis e, portanto, ineficientes.

É o inconsciente operando.

E nada escancara mais essa estupidez delirante que faz mesmo parte de nosso ser e de nossos sistemas quanto a guerra. A guerra é a estupidez a toda vista, sem pudor, sem vergonha. A guerra é o exercício da destruição e da violência mortal contra inocentes. E quando digo inocentes, não estou referindo-me apenas aos civis. Não, claro que não. O que fez qualquer um dos soldados russos que entrou hoje na guerra e está a ponto de ter a cabeça explodida, o que ele fez contra qualquer pessoa da Ucrânia, para ela esteja justificada a matá-lo?. E, pior ainda, os ucranianos, cada soldado ali, muitos deles até ontem eram amigos de russos, o que eles fizeram para que a sua morte seja considerada aceitável e não um crime? Não fizeram nada. Quem fez e quem faz este tipo de delírio mórbido, assassino, são os seus líderes políticos. Mas na logica completamente delirante da guerra está realmente justificada a morte de desconhecidos completos, em nome da defesa dos interesses da nação. Interesses da nação? Que loucura é essa? Bom, eu sei para muitos Ucranianos e Russos agora esta loucura é a única coisa racional que existe. Lutar até morrer em defesa da nação. Tudo bem. Depois de instalada a guerra é justamente a lógica da guerra que prevalecerá até ela acabar. É a lógica da destruição e da morte imperando.

É claro que isto é um fracasso político e deve ser debitado na conta dos incompetentes que forçaram a guerra, que não a evitaram, que a proclamaram e que a estão conduzindo. Vocês são pagos justamente para evitar as guerras. Se fosse para resolvermos na porrada e na bala nossas dificuldades a gente não precisaria sustentar vossas incompetências com ricos soldos e mordomias. Vocês são um fracasso retumbante. E dão mais uma prova de sua inutilidade e desserviço à humanidade. O tempo dirá.

Por enquanto vamos nos ater ao centro do raciocínio. 

Por que mais essa demonstração extrema da irracionalidade e mais ainda, das forças irracionais mais destrutivas em nosso mundo neste momento e especificamente às margens da União Europeia, do velho mundo rico e civilizado?

Quem, de algum modo, conhece o que eu penso, sabe qual é a minha resposta para isto. É a economia, estúpido.

É a crise econômica mundial fruto da grande concentração de riquezas no interior dos mais diversos países do mundo, levando a importante empobrecimento relativo e às dificuldades de realização do capital mundo afora.

Esta situação de crise econômica estrutural impõe aos sistemas e às pessoas em seus postos de poder e decisão a necessidade imperiosa de fazerem besteiras, tomarem decisões estúpidas, darem vazão a seus sentimentos mais torpes e obtusos e, por fim, fazerem a crise avançar no sentido de uma resolução cataclísmica.

As políticas econômicas e sociais anticíclicas, a cooperação multilateral e as respostas sistêmicas planejadas e integradas são, certamente mais racionais e permitem lidar com as crises econômicas de algum modo, com efetividade e dignidade social, mas, quarentenas generalizadas e guerras cumprem mais rapidamente e intensamente o papel de pôr um freio de arrumação na economia desequilibrada, doa a quem doer. 

Há ainda dois fatores nesta grande crise econômica do presente que a tornam muito especial e verdadeiramente única. Eles merecem toda a nossa atenção.

Trata-se da dupla transição sistêmica, mundial, que está em curso e que se acelera com a crise e seus desdobramentos. A transição da hegemonia mundial dos EUA para a China e, com ela, a transição para o socialismo. Todos estes grandes movimentos de transformação no sistema mundial têm uma semelhança com o trabalho de parto natural, eles quase nunca ocorrem de uma vez e nem muito menos suavemente. Não, há contrações e dores, muitas e muitas delas frustras, que não resultam na transformação final, mas, às vezes imperceptivelmente, fazem o trabalho de parto avançar. E é assim que avançamos agora também. Em uma visão sintética, o resultado das grandes crises econômicas do início do século passado e das guerras inter-imperialistas foi o aumento da socialização do sistema econômico político e, ao menos no mundo rico e desenvolvido, governos e políticas sociais democratas tiveram projeção e preponderância desde o fim da segunda grande guerra do seculo XX e pelo menos até o início a década de 80. E, em grande medida, esta preponderância persiste até agora, apesar da grande onda (neo)liberal que veio desde então. Estamos agora no extremo deste momento liberal que, com certeza pouco contestável, leva sempre às grandes crises econômicas e, enfim, nos trouxe até este momento atual. Iremos agora, em movimento pendular, nesta representação do sistema mundial, como nas contrações e refluxos do trabalho de parto, ao novo momento de ampliação, de fortalecimento e aprofundamento da via socialista que, obviamente, no presente se associa à acensão mundial da China.

É claro que o império dominante não tem intenções de ceder sua posição e fará o possível para confrontar a potência emergente, ainda mais quando esta força emergente representa uma mudança, uma transformação ou uma nova forma, do sistema, que ameaça a própria alma, digamos assim, do poder vigente. E é o que acontece com o socialismo chinês em relação ao capitalismo liberal norte americano.

É bom que quem não é da área saiba, e quem é lembre, que a social democracia nasce com a perspectiva de fazer a transição socialista sem a luta armada, sem a tomada violenta do poder, sem a ditadura do proletariado, pela via democrática, por dentro do sistema capitalista democrático.

Muita tinta já foi gasta para questionar ou afirmar essa possibilidade. E como era de se esperar, olhando de hoje, mais de 100 anos depois, parece que essa perspectiva original da socialdemocracia foi frustrada e não conduziu nenhuma democracia ocidental para a transição socialista. Se você olha a história como fotografia e não como filme sim, parece que foi frustrada. Mas se você olha como filme você pode ver que as experiências sociais democratas persistem como instituições que remodelaram completamente o mundo do trabalho e a vida social em diversos países ou, sendo mais ousado, em todo o mundo ocidental rico. E até mesmo nos sistemas subordinados dos países pobres houve ganhos significativos. E com certeza a crise atual é menos danosa do que foi sua equivalente há 100 anos. E com certeza também parte importante da melhor resposta atual à crise se deve aos mecanismos sociais democratas de proteção social e regulação da economia, inclusive as ações anticíclicas, que ainda persistem. Nada disto é parte de um arsenal político liberal. Mas hoje se incorpora em todo mundo e, mesmo depois da onda (neo)liberal bater no seu extremo máximo, que é agora, as práticas e instituições sociais democratas ainda são grande parte do melhor que o sistema consegue fazer.

Mas agora estamos em outro momento e estes recursos sociais democratas apenas não podem bastar, não são suficientes e o que se mostra como alternativa de sucesso é o socialismo chinês. Isso é inquestionável quando a gente olha para a economia, estúpido. E a aceleração em que o avanço chinês se dá é incontrastável. Agora podemos dizer que os desígnios do PT, por exemplo, se atrelam aos da era chinesa no comércio mundial. Sim, como os desígnios do Brasil, independente de quem estiver no poder. Os desígnios da África. Os desígnios de todo o grande território que vai do entorno à China até a Europa. Tudo isto hoje está vinculado diretamente aos desígnios da China. E a China é socialista. Então nós já estamos mesmo vivendo uma transformação de grande extensão e profundidade no mundo capitalista atual. Isto é óbvio e em pouco tempo nem poderá ser questionado. O sistema capitalista mundial está sofrendo uma enorme transformação mundial com a acensão da China.

Ou seja, estamos neste momento de conversão do pêndulo do extremo da onda (neo)liberal para a nova onda socializante, a nova onda socialista. Significando, em termos genéricos, que a produção social será mais socialmente direcionada. Nesse trabalho de parto de superação da sociedade capitalista que estamos desde a metade do século XIX e que já nos trouxe um tanto longe do capitalismo originário da revolução industrial e que está agora neste processo de transformação acelerada, onde tudo, de certo modo, aparece como sendo uma loucura destrutiva, ou autodestrutiva.

Fascismo, nazismo, xenofobia, nacionalismo, machismo, homofobia, racismo, opressão social, exploração e roubo do trabalho alheio, terrorismo de estado, assassinato e tortura de líderes populares nas vilas e periferias, nas ocupações, morte e violência para todo lado como estratégias de poder. Essa barbárie toda, essa loucura totalmente destrutiva, que aparece hoje, de novo, como emergência de energias e forças essencialmente destrutivas e regressivas no extremo das crises na onda liberal e conservadora, isso é, no entanto, nosso dia a dia, aqui no mundo periférico do capitalismo imperial norte americano, por séculos e séculos.

Quem vai dar um passo adiante? Quem vai conseguir tirar o próprio mundo rico e desenvolvido desse estado de barbárie em que está se metendo atualmente? Quem vai conseguir tirar a população brasileira do estado de barbárie em que ela está condenada a viver cotidianamente ao longo dos séculos? Não falo de pessoas, por favor, não me confunda, eu sou anarquista e não precisamos de líderes. O que precisamos é de ideias e ações. E uma coisa eu posso te adiantar com toda a certeza,, não vai ser com a doutrina e as práticas liberais que sairemos dessas crises por um caminho de dignidade humana. Não, com certeza não. A doutrina e as práticas liberais nos tirariam dessas crises, como sempre tiraram, através de muito sofrimento humano e guerras. E só há uma outra alternativa real, historicamente em movimento. É a alternativa socializante: social democrata, socialista.

Vamos nesse caminho e esse é o caminho real de desenvolvimento humano no presente e futuro próximos. O que quer dizer, para nós anarquistas, que o combate será, progressivamente mais dentro do sistema socialista da economia capitalista mundial. Fica óbvio, na própria confusão dos termos, que para nós anarquistas, persiste a necessidade de mantermos limpos os nossos prismas ideológicos e conceituais e sabermos como usa-los. E sim, se o raciocínio histórico que fiz acima é verdadeiro em suas linhas gerais, também é verdadeiro que é o anarquismo o prisma ideológico e conceitual que permite a melhor visualização da complexidade caótica da atualidade e também, consequentemente, a melhor crítica e o melhor posicionamento.

Vale a pena fazer um exercício de demonstração do que seria isto com objetos atuais e, de qualquer modo, para não deixar ninguém perdido, reitero que todo o raciocínio anterior é desenvolvido com este filtro anarquista.

E se eu puder pinçar um ou dois assuntos aleatórios da mídia social atual, algo que tenha algum valor para elucidar o que eu tô querendo dizer, a guerra da ucrânia certamente é um foco.  Não vejo porque anarquistas se posicionarem por um dos lados em uma guerra interimperialista. E o que parece bem claro é que a guerra econômica e os movimentos estratégicos internacionais são muito maiores do que a questão local.Nós nos posicionamos, por origem, contra qualquer guerra entre estados nacionais e certamente não reconhecemos o valor que o mundo capitalista e o conservadorismo em geral atribuem aos Estados Nacionais. Muito ao contrário. Eles são predominantemente, hoje, barreiras para o desenvolvimento humano. A unidade coletiva não pode ser outra coisa que o fruto da livre afirmação e manifestação das pessoas e grupos. O modelo de integração política mais aceitável em uma transição anarquista, pós socialista, portanto, é o Confederalismo. Como Bakunin sugeriu e como está em exercício em Rojava. E isso num mundo de integração digital tem ainda que ser fortemente desterritorializado. Bom, o tempo dirá. 

Quero finalizar com um lamento, pouca gente deve ter notado, mas, aproveitando a situação de estupidez geral em função da guerra da Ucrânia, o estado de Israel está bombardeando o território Palestino e  o estado Turco está bombardeando o território Curdo no Iraque / Síria. Todas são violências injustas, opressivas e no caso da questão Curda ela toma para nós anarquistas o caráter de tragédia simbólica transhistórica de máxima importância, porque é em território curdo, reconquistado do ISIS, pelas armas, que está se realizando a maior experiência político social anarquista de toda a história. Uma sociedade autonomista e coletivista se constrói ali já há mais de 10 anos, baseada em três pilares fundamentais: o confederalismo, o feminismo e a ecologia. Infelizmente são poucas chances de que a maravilhosa experiência de Rojava resistirá aos ataques assassinos do estado Turco. 

Seja como for a experiência de Rojava, caso ela persista ainda por muito tempo ou não, será um momento, já, de afirmação da transição anarquista, que, no entanto, é óbvio, está ainda distante no tempo, em se tratando de sua realização no sistema mundial, que está agora, justamente, como tentei mostrar, ainda na transição socialista.

Você pode me perguntar por que eu tenho essa visão de desenvolvimento do sistema e acredito que sou capaz de antever o sentido deste desenvolvimento, ainda que contraditório e pendular, para o socialismo e o anarquismo. Isso me faz ter que retornar aos meus fundamentos, antropológicos, psicológicos e econômicos ou, ao fim, históricos, pelos quais eu vejo assim. Mas isso será tema para outro post.

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